Monday, April 21, 2008

bleu clair

Quando você me disse para dizer adeus, eu pensei que era algum tipo novo de brincadeira ou peça a ser pregada, então fechei os olhos e disse: adeus, adeus mamãe. Era já a manhã seguinte, e a porta do seu quarto continuava fechada, trancada, e dei batidas leves contra ela, com medo de te acordar com um susto e te deixar mal humorada tão cedo. Sem resposta de volta, passei a bater mais forte, e assim progressivamente, até minhas mãos doerem a um ponto que pensei que iam começar a sangrar sem parar. Cessei as batidas, e meu coração apertou e eu comecei a chorar copiosamente. Na rua uma banda, dessas baratas e meio desafinadas, começou a tocar umas canções, provavelmente contratadas para celebrar sem naturalidade a reinauguração daquela farmácia velha dos Almeida.

Caminhei rumo a janela e da ponta dos pés eu vi a cantoria do coral de senhores vestidos uniformemente. Três deles estavam encarregados dos instrumentos de sopro enquanto outros dois faziam as vezes dos instrumentos de percussão, um batendo num bumbo, ou sei lá o quê, que era quase metade de seu tamanho e um outro rufando dois pratos, creio que para fechar ou abrir os compassos. Prestei atenção no ar de desagrado que vinha do olhar do coral de senhores, e o tamanho era seu esforço em soar agradáveis e felizes, que me lembrei do último jantar que você tinha me obrigado a ir na casa dos meus avós. Eu me recusava a ir, mesmo sabendo que era o aniversário da minha avó, e que ela estava por completar 80 anos de vida “muito bem vividos, senhorita”. Mas é que aquela casa e o que ela significava me apavorava sempre, mesmo dentro de meus pensamentos mais aleatórios. As palavras dela ecoando em minhas memórias, como “a minha vida me dá muito orgulho”, e “espero que você tenha metade da felicidade que eu tive, Mimi”, me traziam sensações então indescritíveis, que somente muito depois pude descrever como pena e remorso. Pena porque eu, mesmo que inconscientemente, sentia que as coisas que vovó dizia eram mentira. Mentira, digo... ela não parecia realmente feliz com a vida de aposentada, inválida, naquela cadeira de rodas. Por mais que ela dissesse o contrário, e que meu avô com veemência concordasse com ela. Remorso porque mesmo sabendo e sentindo essas coisas, eu não conseguia ser uma neta mais agradável. Quero dizer... eu não conseguia me sentir bem dentro daquele lugar, antigo, que remetia a um passado que eu jamais vivenciara, com fotos de pessoas das quais eu só tinha comigo histórias mal memorizadas, pouco fixadas mesmo após inúmeros detalhes narrados repetidamente ao longo dos anos. O passado, de um jeito que não defino com precisão até hoje, nunca me fez bem.

Mas lá estávamos nós, sentadas na sala, você contando as últimas novidades, mesmo elas não sendo tão novas assim. O “sem notícias” do meu pai; a alegria de minha avó ao ouvir isso (de você eu nunca conseguia distinguir o alívio da saudade com relação ao meu pai); comentários semi-aleatórios, como sobre as minhas notas na escola, que andavam regulares, porém sem grandes feitos ou surpresas, e o meu avô como sempre repetindo o mesmo sermão, de que eu para ser uma boa menina deveria me importar e dedicar me mais aos estudos, pois a minha “mãe” gastava tanto do dinheiro dela para nos sustentar, e que na minha idade, você só tirava nota máxima na maior parte das disciplinas... e assim por diante, como se eu realmente estivesse absolutamente alheia à vida que eu mesma tinha com você, ou como se realmente nunca tivesse ouvido antes as mesmas palavras, tão decoradas como um refrão. Já tinha 7 anos, mas continuava sendo subestimada da mesma mecânica maneira desde os meus 3 e pouco, que foi quando os conheci, não é?

Você comentava em contrapartida, talvez sob o intuito de compensar algo ao ponto de vista deles, que eu me tornara uma grande aspirante a pianista, e que o seu velho piano não estava mais abandonado na sala de estar. E com um estranho misto de espanto e subestimação, eles me pediram para tocar um pouco para eles no piano da sala, que estava desempoeirado menos pelo ânimo de alguém ali tocá-lo com freqüência que pela obsessão por limpeza e organização de minha avó. Eu, que fingia prestar mais atenção ao casal de bonecos que tinha levado comigo de casa que na conversa que vocês travavam, sentada sob um tapete velho no canto oposto da sala, ouvi o chamado e encaminhei-me, já esperando que me solicitariam uma peça musical desde que vocês começaram a tocar no assunto. Desde nova sou insegura e desajeitada, e estava nervosa de antemão. Sentei na cadeira que vovô ajeitou, e dedilhei a primeira das duas únicas canções que você havia me ensinado até então. O tema simples e introdutório daquela melodia de Bach realmente era missão fácil de cumprir. Tanto que mesmo meus avós enxergavam com moderado entusiasmo o que eu fazia, e assim ficaram até você dizer que havia me ensinado a música há menos de uma semana. Provavelmente foi aí a vez que mais ouvi elogios da parte deles para minha pessoa, pela minha vida inteira. E os planos recitados e promessas randômicas citadas, de que quando o tal dinheiro que estaria por vir enfim viesse, minha avó me arranjaria aulas com um antigo professor amigo da família, sem ter certeza de que ele ainda lecionava... e assim por diante.

Comemos dois pedaços de bolo, e você voltou a conversar com eles, e hoje e vejo com admiração a comunicabilidade que você e meus avós tinham... coisa que jamais pudemos ou tivemos tempo de cultivar... Enfim, a noite não foi tão desagradável, e passou um pouco mais rápido quando me sentei ao piano, e lá fiquei brincando, pois ele me distraía melhor do que aqueles bonecos que eu tanto já tinha mordido e que já estava enjoada de estar enjoada. Saímos rápido de lá, torcendo para não perder o último ônibus, pois você precisaria estar no seu serviço no dia seguinte bem cedo. Correndo pegamos um pouco de garoa, a condução logo chegou e uma vez sãs e salvas dentro do ônibus, deitei no seu colo assim que nos ajeitamos nos acentos, uma do lado da outra. Passando a mão pelos meus cabelos e sem me fitar diretamente, você mantnha um olhar perdido em um ponto distante, muito além da janela do ônibus. Chegando em casa a chuva desatou a cair de vez. Depois de trocar as roupas molhadas e a bota encharcada, eu me deitei primeiro. Entrei no meu quarto enquanto você arrumava sua bolsa para o trabalho, e só então notei que havia esquecido os bonecos na casa dos meus avós (pois vi minha cama e lembrei do lugar onde eles costumavam estar). Eu sei que no dia anterior eu me abraçara e eles, e que se eles estivessem ali, eu o faria novamente, e que eram imprescindíveis para eu “pegar no sono”... só que aquela chuva caindo, eu simplesmente me jogando no colchão e "desmaiando", e você vindo me trazer um cobertor a mais, pois, mesmo adormecida eu reclamara do frio em alto bom som...Você ali me cobrindo, e me entregando palavras que mesmo que sejam-me impossíveis de recordar com exatidão, trazem agora e sempre a mesma sensação de paz, intacta, que me diz que eu jamais poderia precisar de algo além da sua mão, para me cobrir, afagar e bater, e sua voz, para me culpar, desculpar, e cantar.

A banda tocou sua última música, e as pessoas começavam a entrar na farmácia nova, os músicos e os cantores ajeitavam suas coisas e caminhavam para fora dali. O cocker spaniel do vizinho do 303 se soltara da corrente pela centésima primeira vez, e corria pela calçada, parando e então atravessando educadamente a rua pela faixa, assim impedindo uns vários carros de dispararem rua afora quando o sinal finalmente abriu. Uma senhora vestindo um cachecol vermelho (mesmo que não estivesse tanto frio assim), velha conhecida do dono e de seu cachorro, por sorte estava do outro lado da rua, e segurou o bicho, esperando o senhor chegar. Logo depois uma bola alaranjada saltou de uma janela acima da nossa para a rua, em movimento de parabólico perfeito e eu a vi caindo no meio dos carros, que corriam indiferentes, e ouvi o estrondo forte da explosão dela quando um caminhão de entregas a esmagou.

A manhã tinha um azul claro no seu céu, e disso eu também me lembro. Após o estouro, a rua ficou em silêncio, tirando um ou dois transeuntes que volta e meia entravam na farmácia nova conversando alto. Ela estava lotada de cartazes anunciando promoções e descontos, e fiquei quieta o bastante para ouvir ruídos do seu quarto. Correndo contra a sua porta, evitei tropeçar em suas roupas jogadas do dia anterior, e mais uma vez bati com força, gritei seu nome, e ouvi um som leve, grave e rouco que parecia ser sua voz. Bati de novo, e de novo, e quando parei, já não havia som algum, e, naquela idade, eu não saberia o que pensar. Supondo que você tinha apenas e nada mais que um sono pesado, me aliviei por uns instantes, e caminhei rumo ao piano. Tirei a toalha verde e branca, com tomates pintados, que cobriam a tampa do seu teclado, e me ajeitei na grande cadeira, começando a tocar em dois, e três e finalmente em quatro acordes a nova música que você me ensinara três dias antes. Lembro-me muito bem que era uma canção para mim então de dificílimo aprendizado. Porém na hora esqueci completamente de qualquer dificuldade, e a executei com quase perfeição. Minha mão direita foi indo e voltando, e a esquerda recitava o tema principal timidamente, e assim repeti a melodia várias vezes, me distraindo e esquecendo do tempo, não associando por trás da melodia o que depois fui concluir ser o barulho ou da extensão do telefone do seu quarto caindo no chão ou de você mesma caindo da cama. Ou ambos.

Toquei, e toquei, e só parei ao ouvir da porta uma grande batida, de pessoas que pareciam estar com sérios problemas. Minha prematura intuição supondo apenas se tratar de uma emergência em minha casa, incêndio que eu não havia percebido, ou algo do gênero, pois pouco antes eu ouvira uma ambulância ou sei lá o que era, disparada e desesperada subir a rua e estacionar na frente do nosso prédio. Eu abri a porta antes que as pessoas achassem necessário arrombá-la, e já se passaram 19 anos, mãe.

Sunday, April 20, 2008

Sobre Caramujos Alpinistas Na Parede Do Banheiro

E diz que ”sempre” é duas vezes
Aquele dia formalmente dividido em 7 partes
Repete “tanto faz, um dia ou 9 meses
Fazem-me prisão e decomponho qualquer arte”

Eu estive além do muro, onde quem mente
Encontra a mais supremadivinacasta rendenção
E, sim, lá estive porque lá o fiz, “’sente?
Eu perco um dedo a mais cada vez que extendo a mão”

Enquanto a hora passa, o vento arrota
Vão dizendo que um dia você se atreve
E morre com 3 facadas diferentes, “sem porta
Aberta, ou certezas e convicções: jamais as teve”

Preste atenção! quando acabar, corra e não desate os nós
E associe esta lógica ao seu mais extremo sentido
Ninguém jamais dirá, e palavras em si não se dizem por si sós
A verdade é inogârnica e só grita ao pé do ouvido:

“Desejas-me quanto mais sabe que jamais me terás
Porém não me amas, pois não existo: o que é jamais será."