Tuesday, April 24, 2007

Bloody Babel

Era cor de mármore o brilho. Cortava a multidão, à velocidade do som, enquanto ele cortava os postes e as idosas passantes à velocidade de cágado. De passos, dos passos, contados, perdidos em conta, o ar se cortava em papel de seda. Fino, tanto quanto. À superficie, a face rabiscada, em assimétrica doçura. Dela lembrou-se, e àquela manhã de abafamento, de contentamento, de estrangulamento, estava por entre seus dedos. Gofava, dentre uma tosse e outra, minúsculos pedaços de vida. Fitava a "artéria" pulsante, ruborizada, no globo ocular. Fedia e babava sobre a testa, e então, a nuca, desta. Ao redor, nem sombras testemunhas, o juramento de silêncio, e já seriam 11 da manhã.

Era de cor amarelada o brilho. Cortava a multidão, à velocidade da luz, enquanto ele cozia os neurônios em banho maria, de pé, em Auschwitz, em hora, na hora certa que se distanciava da linha branca do acostamento. Chegara a chuva, e o a chuva de meteoros da galáxia Cygnus X-1 rasgavam o concreto e o asfalto. E a chuva ácida que derretia sua pele, fundida no azulejo do chão, extirpa aquela saudade, estripa a verdade quase romântica do sonho cumprido à risca, estrupa, ao meio dia e meio, o meio dia inteiro. Seu pânico: estava dentro de sua canção de rádio, ecoando-se pelas paredes.

Era cor, de si por si só. Cortava a multidão, à velocidade de gente manca, enquanto ela carregava o peso da vida no cocuruto torto. Ode a roupa suja, a sede rasgada, ao choro raquítico, murmurava melodias populares. Mas aquela paisagem era quase gótica, com seus cactus verde musgo, com suas caveiras roídas, com a cadela -que um dia fora baleia, mas agora nada mais era que uma sardinha moribunda, mortíça- e suas costelas viradas do avesso, com o camundongo quase morto atarrachado por entre os caninos. E meteoros cortam novamente o céu, rasgam a estrada de terra em 4, estraçalhando ela, a cadela, o que restava do rato, lá. Vêm telejornais, que trazem notícias, que saem pelas rádios, que saem pelas paredes, que cortam o ar à velocidade do som, que navalham à pele das pessoas à velocidade da luz, que abrem a bica lavando as mãos sujas de vermelho, que aparatam-se com curativos na partes onde a pele é derretida, que abrem e fecham buracos em terrenos baldios, que epilecticamente desfalecem em meio ao passeio público.

“Estamos aqui, à uma hora da tarde, direto da 13º DP, onde um homem, cujo nome ainda não foi divulgado, declarou-se culpado pelos três brutais assassinatos, que chocaram o país nessa última semana. Mesmo com seu advogado apresentando, e, inclusive, comprovando o álibi para os dois casos mais recentes - o homem estaria na cidade do Rio de Janeiro a semana toda, onde já havia sido indiciado pelo primeiro crime, ocorrido nesta terça-feira-, este afirma ser o algoz dos assassinatos cometidos, tanto em Belo Horizonte, na manhã dessa última quinta-feira, quanto em São Paulo, às 3 da tarde do mesmo dia.”

Monday, April 16, 2007

Mah - I

"Chega, eu já disse que estou sem tempo. Anda!" Eu pedia mais um segundo, mais um trejeito desejeitado, mais um qualquer..., qualquer coisa servia, qualquer pedaço dela, -qualquer, qualquer-. Mah estava saturada, e não cabia nos próprios gestos de inquietude, desdém, e derivados. Perna cruzada (a dela), eu notava até cada um dos milhares de pontos negros ao longo de suas... "distantiosas" pernas (não tinha adjetivos nem então, fitando à 3 palmos à própria, quanto mais agora, a séculos-luz do que ainda me resta da memória, de sua imagem... "cálida", "pura", "cas.."...Raios! Sempre péssimo, previsível, óbvio na escolha dos meus adjetivos...). Coçava a nuca a cada montante de segundos, o couro cabeludo com a ponta fina da unha do dedo mindinho, com esmalte-recém-retocado rosado claro, e os fios finos semi-castanhos no colo superior dos seus dedos, e as mordidas, beslicadas, que Mah mesma dava na ponta de seus lábios de um róseo natural, quase rústico. (Tudo passava por mim, tudo seria transposto no que eu pretendia.)

Forcei a garganta, pouco, escalavrando-me por um instante curto, e enfim o olhar dela recaiu do ponto mais alto do teto da sala, para... para... para... apontar o meu queixo. Pedia para que não se mexesse, a partir dali, e eu que um dia a quis tão impalpável, para não corromper-me e decepcionar-me, caso a tatuagem que já havia marcado, à ferro e água, há anos no meu inconsciente, se revelasse inverossímil... Eu que já a quisera na devida distância, nem transeunte na linha do horizonte, nem na esquina, à porta da confeitaria, podia agora até ajeitar-lhe a cintura, e pedir pra que inclinasse 20 graus a esquerda, e pedí-la para calcular o cosseno daquele ângulo, em uma quase piada, e já esperar seu sorriso torto, porém espontâneo, com o qual eu vinha me familiarizando, tão intimimamente, tempo atrás.

Mah não entendia, e já desistira há algum tempo de compreender minhas loucuras. Talvez pela “intagibilidade e imensurabilidade no que se refere aos pensamentos e alma de cada um”, arriscaria um livro de auto-ajuda, mas ela recusava, sabia eu, essas generalizações, e já tivera atenção específica em mim, também, um dia. Os rabiscos na parede, meu sol de sorriso não-linear, de brilho tangente ao solo, "isso era para ser uma estrela?", o meu verso (ou de outro tolo), meio sem nexo, rabiscado no canto superior direito do caderno. "Quê que tá escrito aqui? Você ainda estuda árabe?". E me fazia soltar o riso, mais barulhento e incômodo do que as pessoas ao redor esperariam, e que ela recebia, sempre, com mesmo espanto, contudo, de sua parte, que se tornaria surpresa agradável. Mah nunca entendera plentamente nada de mim, e preferia assim permanecer, como em um estado de espírito, e estava ali diante de mim, fazendo pose, de Monolisa-pós-moderna, que ao invés de guardar um riso cínico, postava na face os dentes como em alicerces metálicos de algum prédio de luxo (sim, ela e seu aparelho). Eu, não... não... não tinha nada de tinta, nem aquarela, e nada de artigos pintura, como insinuei há pouco, faltava-me, e até hoje é assim, o talento para esse tipo de arte. Eu rabiscara, sim, primeiro, em giz de cera marrom um esboço, traços sem nexo, deslinhados, aleatórios. Refiz e fiz e refiz circulos grandes, mesmo sem compasso. Fiz o serviço em cartolina “papel-40-quilos”, e pronto: um mosaico digno de trabalho de jardim de infância (sem desmerecer a sinceridade de tais "obras", claro).

Mah espreitara minhas intenções com o papel, tivera a noção do que se tratava, e começara a rir desembestadamente... “Mas o quê...? Não acredito...”. Ela me dava naquele instante o “qualquer-qualquer” pedaço dela que eu tentara garimpar até aquele momento. E que agora, agora-agora, tanto me falta, enquanto, deitado, aqui, com dormência impiedosa atacando as pernas, vejo da janela, o sol e a luz amarela pálida, passando por esses vitrais pseudo-góticos, e colorindo tão falsamente o chão e o azulejo branco daquela, dessa sala, de vinho, roxo, e fim e noite precoce. E fim.

Monday, April 09, 2007

Epitáfio Segundo


Eu te amo. E tá, eu sei, palavras só são palavras, velha frase clichê de traseiro de caminhão. E são ditas no ar que se escafedece-se redundantemente antes que tu termines de respirar entre um tossir, um chupar de catarro e mais outro. E te joga entre os pedacinhos dos mousses de chocolate presos nos dentes que tu não escovaras desde o café com leite de ontem de manhã que tomamos antes de sair pra trabalhar. E as baratas daqui de casa estão perdidas de todo tempo, espreitam-se entre a tampa de chá, coador bege, mexilicam os grãos de açúcar com leite que ninguém varreu, e tú gritas “que merda!”. E está lá trás, vá pegar você a pá pra varrer essa melequêra. Traz a toalha, traz o papel higiênico, traz o documento. E onde eu assino? E coças a mão enquanto escreves. E coças as canelas, enquanto mosquitos te pinicam à’lma (alma fede a queijo mesmo). Nariz meu escorre, e tá, eu já disse isso a tarde toda, mas só queria que tu soubesses que: E ponto. E te embrulha o estômago o meu petit gâteau sem talento ou amor, teus olhos me confessam. E ontem de noite foi terrível, eu sonhava que o fim de mundo era hoje, que cães sarnentos do tamanho de elefantes invadiam a sala de estar que, ao invés de azulejo pele de lagarto, era pavimentada de paralelepípedos cor-de-rosa. E sonhei que a goteira do teto do quarto se mudara para o quarto das crianças e pingava bem em cima da tv 14 polegadas. E vamos jogar paciência, meu amor. Quem vencer mais rápido paga a conta do Habib’s. E tá tarde, porque você ainda não está na cama, caralho? E porra, eu já te disse que não é pra subir na janela desse jeito, já me cansei de te dizer que não é pra você se jogar lá embaixo, sujando o pátio da Dona Rita. E a saudade tava cansada, tirou as meias com chulé, a camisa listrada podre de suor, esticou as perninhas no sofá, lembrou-te da vida que foi sem voltar atrás. E atrás. E atrás. E atrás, você sequer vai voltar atrás. E mesmo seu disser que se eu peco é na vontade de ter um amor de verdade, você já nem lembra do que eu lhe disse. E que as coisas passam, você já sab... (digo) lembra, muito bem.



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Ps:

Foto garimpada do acervo de Geoffroy Demarquet. Vamos, clique aqui para ver seu perfil no site Olhares.com.

Tuesday, April 03, 2007

Epifania e Eu: I

6 de Janeiro. Eu estava lá sentada no canto da sala, quieta, na minha, não incomodava ninguém. Era ela que vinha dizendo bom dia mumurado, e jogando as roupas pelo tapete de entrada, e esticando as pernas mal depiladas na minha poltrona favorita. Um abuso só. A sala de aula estava com umas cadeiras tortas, cheirava a desdém, e o quadro negro tinha borralhos brancos, gizes usados pra rabiscar rascunhos fedidos, dos desconhecidos vizinhos de classe. Ela chegou simples e pura, nem disse nada, ela costumava, basicamente, se comunicar com olhos e face, dependurou a mochila na cadeira à frente a que ela se sentou, abriu o caderno iniciando as primeiras anotações do dia. Ela sentava na poltrana rosada, e adorava ir até a geladeira pegar suco de cajú e pudim. Comia, babava, lambuzava, sentava e pulava na poltrona, sempre dizendo do dia, uma bosta como todos os outros.

Ela sequer perguntou meu nome, e indagou que horas eram. Ok, respondi de canto de boca, três e cinquenta da tarde eram, e continuei na minha, procurando ânimo para recomeçar a estudar. Ela ensaiou um sorriso, e já meio sem paciência, cuspi a pergunta: qual era a graça? Ela sempre ria das minhas manias estranhas, como não saber como dizer as horas de forma abreviada, como em "15 p'ras 5", ou mesmo, apesar de ser moça, esquecer sempre a tampa da privada aberta. Pediu desculpas, e continuou a fitar o seu caderno, que nem parecia caderno de "menina". Tinha um tigre branco, de olhos violeta, com bigodes tortos, no meiode uma paisagem que nem de longe parecia a África, aquele mesmo fim de mundo.

Perguntei que de turno ela era, por até então não tê-la visto pelos corredores da faculdade. Ela sempre se gabava de ter conseguido passar na prova de transferência para o curso de Engenharia Civil. Mesmo tendo se formado no ensino médio em colégio público paupérrimo morinbundo, ela era uma nerd com “n” maiúsculo. Dedicada, minto, não, obscecada pela carreira e pelo futuro. Suas obsessões e apegações... Ela comentou que tinha acabado, sim, acabado, bem há pouco, de ajeitar a “papelada” para transferência, e que agora, finalmente, poderia se considerar “caloura da universidade X ...”. Estiquei ambas as vistas, e estranhei, parecia auto confiante demais. Nada tinha a ver comigo, afinal. Não, eu prefiria aquelas mais caladas, silenciosas, até autistas. Ou seja, as parecidas comigo, contudo, ainda mais subjetivas e anti-sociais, anti-anti-sociais, anti-qualquer-coisa. Definitivamente não fazia meu tipo. Ela vivia resmugando sobre a minha mania de ser do contra, e brincava, enquanto arriscava umas quase-cócegas, dizendo que eu era a “pseudo-telectualzinha” dela. Virei de lado e a ignorei, fechando a face voltei para mim mesma.

O professor mentecapto-fedido-aidético-tísico de Cálculo chegara mais cedo, para nosso espanto, e começou a apagar o quadro. Pronto, agora que a paz descera ralo a fora. Ainda faltavam dez minutos para qualquer coisa: aula, contato-calor humano. Blá, blá, blá. Inventei de beber água no bebedouro mais longinquo do universo. Ela perguntava, com a falsa curiosidade dos que já sabem o que querem: “Você não tem distúrbio de uretra, nem nada, então, você não sente tanta sede, sente?”