Tuesday, March 27, 2007

O Pombo e o Assassino

Caído de banda no chão, o pombo tinha cor azul escura, cor cinza, e um pouco de cor roxa de intermedio entre ambas. Fresco, morno, sem moscas, vermes, devia ter sido abatido há pouco. Óbvio, ainda se mexia, ainda emitia ruídos baixos, e piscava o par de olhos a cada par de segundos.

Seu assassino, já devia ter descido rua abaixo, tropeçado em algum paralelepípedo, ralado o joelho, enrubescido a pele e os lábios, levantado novamente, e deve ter ido embora, ainda saltitante, com seu meio sorriso nos lábios, com o elástico preto, velho, comido, do estilingue envolvendo seu pescoço, por sua vez empestiado de suor meninesco, que fedia ardido e salgado.

Estendido, no meio do gramado não-tão-verde, o pombo cavoucava entre suas penas com a asa livre - aquela cujo o peso do seu corpo não imobilizava-, sob um leve, tênue desespero. Tênue a ponto de ser como um desespero tranqüilo. Tranqüilidade que vinha da ausência de consciência sobre este desespero, sobre a morte eminente, sobre a hipótese de que nunca mais faria as coisas que gostava, também ser ter idéia das mesmas. Nunca mais voaria aleatoriamente por pelas ruas cinzas. Nunca mais visitaria praças desertas lotadas de lixo e bagulhos jogados. Nunca mais pousaria no alto daqueles prédios do centro da cidade, em sacadas esquecidas, ciscando pedaços de não-sei-o-quê trazidos pelo vento. Nunca mais seria aquele inconsciente passatempo para os idosos ociosos e suas migalhas de pão dormido, e para as crianças estúpidas e seus trejeitos barulhentos.

Seu algoz já devia estar em casa, teria lavado as mãos depois de ordens maternas, e desobedecendo prontamente, abriria a torneira sem estender suas mãos sob a água, e logo estaria sentado, em algum momento, frente à mesa, com toalha listrada vermelha e branca, e estaria com fome, e estaria anscioso para degustar o que a mãe preparara naquele dia, e se satisfazeria ao descobrir que se tratava de frango, e arroz com feijão fradinho, e comeria com fome e pressa, e ouviria sua mãe dizendo para comer mais devagar, e sorriria com os dentes cheios de feijão enganchado e agarrado, e ouviria da mãe frases do tipo “mas que menino mais lindo. Mais lindo do mundo.”, mas não se importaria com o que isso poderia significar, porque ouvia essas frases todo dia, e fazia essas coisas todo dia, e então não devia haver significado relevante afinal para aquilo tudo.

Desbotado, o pombo se ajeitava, e sentia a cabeça doer deveras. E era apenas isso, a cabeça doendo, e mais nada. Sangrara medianamente, mas o sangramento já se estancara e se tornara coágulo por si só. Ainda se mexia com dificuldade, e como a maior parte do que acontecia na sua vida, não se dava conta do milagre que acabara de vivenciar. Não se dava conta que a pedra acertara de raspão sua cabeça, e não em cheio, e que não morreria mais – mesmo não tendo passado pela sua mente, em nenhum momento, a consciência da sua eminente morte -. Impreciso, vôou dali a uma semana, sem se lembrar de coisa sequer. Ingnorante e ingnorantemente, se dependurou novamente nas sacadas cheias de poeira, planou sem pressa pelas ruas de cinza desbotado e foi mais uma vez a diversão dos velhos ociosos e das crianças estúpidas.

Seu carrasco levantaria da mesa, logo depois do almoço, correndo para escovar os dentes, e os escovaria muito mal, e se jogaria no sofá para ver este fazer barulho, e gritaria um pouco, pela felicidade e satisfação animal de estar de barriga cheia, e sua mãe pediria pra que ele parasse com aquilo, e ele seria teiomoso e não pararia, e ambos seriam interrompidos por um baque estrondoso de porta sendo quebrada e botada à baixo, por onde homens encapuzados com metralhadoras entrariam, e matariam fugazmente ambos, com mais de cem dezenas de tiros, e a sua mãe estaria minutos depois encharcada de sangue, dela própria, e de água, da pia que ficara aberta, com o olhar pintado nos olhos de quem encarou a dama morte de frente e perdeu, e o menino, com uma metade do corpo estendido no sofá, e uma outra metade pendurada, perto de tocar o chão, teria para sempre no rosto a expressão de desespero, angústia, e plena consciência do seu fim.

Enganchado, o pombo prende a sua asa em um pedaço de arbusto, entreaberto à uma raiz grande de árvore. Solta-se, perde 3 penas, e volta a voar, apreciando com um par de vista negro, ignorante e indiferente, o pouco que resta do dia, das pessoas passando, e do sol que se pôe, nem amarelo, nem branco, mas como todo resto: cinza.

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Fonte (da foto): site: www.olhares.com
Usuário: Manuel Ribeiro (clique aqui para ver seu perfil e seu álbum de fotografias).


Friday, March 23, 2007

De

De que ele já havia aposentado seus calos. Tombou cabeça para canto, novamente, apontando parede, fechando olhos, palpebras, mente. Escrevia com quase coragem e quase covardia, quando mais jovem. De coragem tinha de fitar desconhecidos, deste ou de outro lado de espelho. De covardia havia “bons dia” e “...’tarde”, sequer evitados, ou senão, respondidos com sustos e gaguejos. De seu relógio sem ponteiro, não digital, cuja importância era irrelevância: jamais soubera ver horas nele. De indeterminação, tanto fazia.

De saudades de mãe e irmã sua. Com dados sinais periódicos de vida, em quarto de lado. Saudáveis, sociáveis, normais, saudáveis, deve-se citar. Lembram-se de dia que ele desaprendera pronuncia de nomes próprios. Vocativos. Sem mais, pensavam vizinhos ser mudo, agora. Não. Gritava, quando calor e sufoco das cobertas quentes pinicavam. Iam interjeições, deuses, putas. Nunca ninguém chamado. De si para si, tudo. Da mesma forma, não atendia chamados. Mãe, irmã, batendo em porta de quarto. Sem resposta. Abria porta e saia quando queria. Trancava-se sob mesma regra. Apenas. Em início, consternação de parte delas. Com tempo, costume. Sentia falta, claro, como qualquer boa mãe e/ou irmã. Tardes eram solitudes, contudo, nada mais que isso. Solitudes.

D’ele, em seu quarto, divagava, devaneava, sem lembrar de certo quando deram início surtos, sandices crônicas, ou quê. Desaprendera vocativos, já acostumara-se com isso. Preocupação veio quando artigos também foram desaprendidos. Nem determinados, ou indeterminados. Tanto fazia se aglutinados em preposições ou tolices linguísticas outras. Seja que era que fosse, chegara a controlar cada palavra. Escrita, pensada. Seu último souvenir de desesperanças e memórias vagas reinventadas –escrever- despedaçava-se junto de outras coisas. Indefiníveis.

E escreveu até tinta de teclas apagarem.

E escreveu até tinta de canetas secarem.

De folhas em branco, inimigas de antes, agora criara costume.

E escreveu até tinta que ilustrava pensamentos acabar.

Deu por fim a saudade da mãe e da irmã.

E de céus estralados e campos verdejantes de glacê.

Só a parede, do sem sentido tombado e ao calo maior cada vez mais.

A vida do ensaio improvisado era uma vaga sentença do primeiro versinho daquele poema, enpacotado em papel crepom rosado, forma de coração-abacate.

O primeiro soneto também estava debaixo da cama, num papel manchado de café, dividindo moradia com umas aranhas feitas de poeira e umas formigas desabrigadas.

Monday, March 19, 2007

...

Preciso de idéias leves e compactas
Que caibam de baixo do braço
Que eu possa tocar rapidamente
Pela tecla certa
Pelo acorde dissonante
Pelo braço descoberto

Nem tão feliz assim
Até que talvez faça chuva e sol no quarto trancado

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Ele era um menino que curtia poesias, sabe? Tava rodeado de rascunhos tortos e palavras, frases, textos prontos. Tinha toda e cada solução para cada atribulação d'alma, e essas simpatias universais. Tava bem entre os quereres e os deveres. Tava bem com seus horóscopos, com suas estrelas em parede quarto, com seus rabiscos...

(Se)

Havia talhos e telhas despencando pelas pontas da casa e dos quartos.

(Se)

Vazavam acordes p'ros ouvidos: escorriam versos das unhas

(Se)

Sentia que quase meio caminho estava andado: o vento batia a porta e rachava as frestas e fazia parte do teto despencar.

E tudo havia começado com seus devidos pedaços faltando...

Thursday, March 15, 2007

Cale-se

E eu estou meio cansado de estar acorrentando minha língua lambida e babada
Eu não digo "calalho", digo "caralho", não digo "pola", digo "porra"
Com suavidade cuspo "foda-se", "susurro" te amo, e tudo vai
Sem precisar voltar, nem deixar um bilhete em cima da mesa
Ainda estou meio termo, meio livre, e me sinto quase completo
O que digo evapora com minha saliva, e o que fica é um éter estranho, que nem me dou o trabalho de distinguir ou discernir
O que digo nem faz questão de fazer sentido, nem pra mim, quanto mais pra mim (ou vocês)
Evitem o trabalho de se magoarem ou emocionarem por qualquer coisa que saia desse buraco aqui
É tudo por ser, por estar oco de tangibilidade e recheado de pó de estrelas.