Wednesday, May 23, 2007

Bromélia

Nos revezávamos em nossos abraços
Eu a afagava enquanto estava longe o bastante
E ela me tocava quando eu já estava distante, à salvo
Do risco de sentir o toque à pele
E estávamos bem-bem-assim-assim
Currando nossos sonhos sobre o capim seco
Sobre um feno qualquer, repleto de carrapatos famintos
Lágrima?
Era o nome que ela dava a vesguidão.
É, soslaio, era pleno olhar que me fitava, dela, então
Quando limpava as marcas de sangue azeviche
Atravessando, roçando as pernas até no ar, atravessando...
O quê? Que se vai.
Que se vai e perfura a dor de calcanhar
Faça me o favor de ser a chave que vira
A curva cruzada na hora de voltar
A embriaguez, a pressa, o desfiladeiro, a explosão, os destroços
A inapetência, o ciso que espicaça meu lábio
Não por paixão, sim por repulsão
Que quero ver logo a hora se semear suas cinzas
No teto daqui de casa
Ver você nascer como realmente é
Não mais orquídea, ou lis (ou merda que for)
Mas como bromélia
(Carnívora.)

Monday, May 21, 2007

Al (II)

Esse lugar já foi mais belo... A cafeteria não existia mesmo, deve estar aqui há pouco mais que um ano ou dois. Droga, na sola ainda tenho um chiclete, pensei que tinha saido. Quer dizer, espero que seja realmente chiclete, e não outra coisa... Hahaha. Droga, ninguém olhando? Ah, tanto faz. Vejam, crianças pulando pra lá e pra cá. Em pleno entardecer de domingo? Que coisa mais estranha. Ainda com esse frio. Gente do céu... Elas se divertem, ao contrário de mim... Pera, estou tão entediada assim?Às vezes eu mesma caio nesses paradigmas que as pessoas impõem a si mesmas e a seus decendentes, filhos, e tal. Só por estar sozinha não é exatamente estar só, e, conseqüentemente, estar triste. Já passei por momentos muito mais maravilhosos d’eu comigo mesma, do que com certas companhias. É, aquele céu nublado está desaparecendo. E choveu há pouco mais de meia hora... Menos mal. Vejam elas, nossa, essa brincadeira eu não conhecia...

...

Ah, essa sim, essa eu conheço.

...

*Um grupo de crianças se aproxima caladamente pela lateral esquerda, e uma menina de olhos azuis e cabelos castanho-claros puxa a ponta do seu casaco.

Hum.. Abaixo assinado? Para quê, minha jovenzinha? Ah... Bela causa, hein? Tão jovem, e já uma ativista política! Haha. Ok, sim. Deixe-me assinar... Pronto. Hum? Ah, não pode ser rúbrica? Tudo bem, certo. Mas não está legível o meu “Mah”, não? Hahaha, eu sei, estou só brincando. Pronto... De nada. Bom domingo pra você também.

*O grupo de crianças se afasta

Tão, tão, tão... Eu sinceramente tenho vontade de ter filhos. E ai deles se crescessem! E se tornassem como eu, ou... o Sol se pondo! Vejam só! Eu costumava sorrir de dia em dia, e é dia, e eu sorria. E a gente via o pôr do sol junto, é. Eu devia sorrir bem agora, rir também desse... Droga, não acredito. Hahahahahahhahaha. Pisei nessa troça de cavalo defecada. Gente... Hahahahahaha. Ai, dio... Vamos arranjar um lugar pra limpar isso. Hum, aquela lavanderia deve ter uma pia, sei lá... Que saudades do que eu era... Eu deveria amar meu presente, pra ser plena e feliz, e motivos realmente não me faltam. Estou em um relacionamento harmonioso, estou encaminhando uma carreira de pesquisadora bem sucedida... Claro que vou ter que sair do país, pois essa área de pesquisa aqui é a mesma coisa que nada. Estou caminhando pra algo bom... Estável. Estável? É, talvez. E talvez isso seja ser feliz. Só que... Será que ele está em casa? Droga, que idéia, eu ir até a casa dele... Que... Que... É. Vou. Lá.

...

*Havia um parque, uns destroços enferrujados, em meio a uma porção de grama fresca. Em torno, uma placa de escritos ilegíveis pra seu estado de consciência.

...

Até onde eu lembro, foi ali que eu o conheci. Tinhamos nos fitado algumas vezes, quando iámos a nossos portões receber nossos pais, mas ainda estudávamos em escolas diferentes, e era impossível uma aproximação maior. É, foi a bola dele que varou do quintal até a minha cabeça, em cheio. Minto, quase em cheio, pois ricocheteou na corrente que prendia o balanço àquela barra de ferro. Era uma bola de borracha, se eu estivesse mais distraída, eu nem sequer sentiria, ou simplesmente seria um mosquito me esbarrando. Só que eu não pude evitar a vontade chorar, e comecei e berrar, como que adivinhando... Intuição feminina em plenos 7 anos? Haha. Eu nem tinha uma idéia fixa da diferença entre menino e menina...E ele veio me pedir desculpa, e conversamos. Me disse seu nome, e eu disse o meu, e só. E disse que meu cabelo era lindo. E foi embora, sem esquecer a bola. E... Dez anos depois. O dia era belo, e nós estávamos no auge de nossa distância. Pediu me pra servir de modelo, a uma pintura dele. Porém ele nunca, NUNCA foi de pintar nada. Tirando aquela vez que ele coloriu uns bonequinhos-paltinho e tentou fazer uma pseudo animação, pra nos entreter em alguma aula de química inorgânica. Ele nunca foi de pintar nada.. E afinal de contas, era uma certa mentira. O que ele fazia era uma porção de pala...

O que é esse barulho?

...

Ahn? É impressão minha ou saiu alguém correndo de dentro da casa dele?

Am... o quê...?

Eu fiquei 10 minutos aqui parada, vendo isso aqui, que um dia foi um playground, e não me dei conta que o portão da casa dele estava escancarado o tempo todo, desde o início... Deus... E que...?

...

Tem gente vindo dos outros lados, murmurando muito, muito alto. O que há? O quê? O quê? O quê?

*O tempo se fechou, mais uma vez. O sol já tinha se posto há alguns minutos, e as nuvens voltavam a se espalhar. Pequenos pedaços de chuva começavam a se a rarear pelo ar, até ocupar espalhar a umidade fria por toda parte, causando a sensação de que pequenos retalhos instantâneos se faziam em torno da face, conforme ela caminhava rapidamente, para, então, finalmente, correr.

Sunday, May 20, 2007

Al (I)

*Pé dela arrastando alguma coisa na sola, chiclete ou coisa assim, e ela abre a porta da cafeteria, e se senta com as pernas, as tais das pernas, cruzadas, ajeita o casaco e a bolsa. E diz de si para si mesma:


Já faz tempo que recebi a carta, três semanas, acho, e que agora nem sei mais quando, a data borrou, caneta tinteiro, manchou todos os lados da folha. Choveu. Me lembro muito bem o que ele queria. Me encontrar aqui nesse bar, doceria, sei lá... Minha pele tá uma desgraça, descascando, tá parecendo escama de cobra. Nesse mesmo horário, mas há duas semanas atrás. Duvido que ele venha pra cá, desde então, todos os dias na mesma hora. Ele tinha deixado o número de celular, mas só dava fora de área, quanto tentei retornar. Mandei 500 mensagens pra ele vir me encontrar aqui hoje. Se ele recebeu... Pra completar, está bem nublado, deve chover em breve. Ele detestava chuvas. E mesmo que viesse debaixo disso, duvido que me fosse reconhecer, já que não sou mais aquela menininha raquítica por quem ele era apaixonado. Já não sou a garota que ele... naquele dia... Eu só sei que devia ter cortado as unhas, e retocado a droga do esmalte, que tá todo borrado. Merdé. Eu agora sou mulher, tenho um brilho diferente, uma coisa assim, assim, não suspiro à toa mais por ninguém, ninguém, ninguém, não espero a sorte, o amor, ou o sexo bater a porta de casa e dizer "vem". Não mando mais cartas pro papai noel, nem telefono todos os dias pra minha mãe, que meu irmão enfiou no asilo janeiro passado. E essa cabeça que coça, meudeusdocéu, tenho que trocar o shampoo anti-caspa. Visito a velha sempre, ela se tornou caduca, de educação antiga, religiosa, eu preciso... Onde está a droga do garçom? ...Eu preciso visitá-la essa semana ainda. De educação antiga, a família dela sempre achou que lugar de mulher é na cozinha, e essas baboseiras. E pirilim, lá vai ele atender a mesa da moça mais gostosa, safado. E pirilim, nunca passou do ginasial, sei lá o nome, coisa como a nossa quarta série, por aí. E por que raios estou repassando essa pseudo biografia de tudo que venho fazendo? Eu não vou encontrar ele aqui. E eu mesma não sei como ele soube que eu via pra cá por esses dias... De certo se equivocou nas tais das datas. Semana passada ou retrasada era impossível vir. Mas é, o doutorado começou nessas semanas, biologia, animais marinhos. Sempre gostei, e me lembro de quando eu ficava folheando aquelas revistas sobre tartarugas, e ele vinha me cochichar que eu seria veterinária. Meio lesado, hahaha, as vezes ele era tão, tão... Será que ainda tem esses ataques de bobices? Não sei. Mas as vezes ele me torrava a paciência. Ah, enfim vem esse garçom lerdinho.
Ok, eu vou querer um capuccino, e umas torradas amanteigadas. É, só isso. Ok.

A viagem até aqui teve de ser de trem, aqueles novos, que o governo instalou no início do ano. Acho que também choveu no caminho, mas não, não lembro. Posso só ter sonhado... E sai tão exasperada de lá, com medo de perder a estação, que nem reparei se as janelas estava molhadas. E espero só que não demore. Ele me torrava a paciência, com exigências estranhas. Teve da vez que me pediu pra que dissesse o nome da minha estrela favorita, e eu com sombrancelha levantadinha murmurava: “Sol?” E ficava rindo, e me perguntava porque o Sol, e lá ia eu dissertando sobre coisas assim: “Ah, o Sol é mais perto da Terra, logo, é o que eu conheço melhor. Digo todo dia ‘bom dia’, ofereço o chá das cinco... Sem contar que as outras estrelas estão longe demais, e parecem todas iguais. É que nem uma multidão, sabe. Olhando de cima, todas as pessoas são iguais, um, e mais um, e mais um. Se alguém mais quente que algum outro, não dá pra saber, porque nunca estaremos perto o bastante pra ter certeza e sentir o seu calor.” E ele me perguntava, sorrindo, tantas vezes, “Por que você não faz um poema?”, e eu sempre repetia a mesma coisa, que eu não era poetisa, que o que eu gostava era de biologia, de decorar nomes de proteínas, e etc.

*Um pouco de chuva começa a cair, novamente. Mas ela mantém o casaco dobrado sob a bolsa.

O Al... Eu o chamava de Al. Enfim! Enfim as torradas e o capuccino. Obrigada. Essa mesa é suja demais pra mim. Está frio, aqui sempre foi frio assim, mas depois de passar tanto tempo no Rio, a impressão que tenho é que esse lugar se tornou ainda mais frio, como que em contrapartida, dizem, dizem, que o Rio de Janeiro está cada vez mais quente. Deve ser o fim do mundo. E eu o chamava de Al. Al, de au, au, de onomatopéia de latido de cachorro, mesmo. Ele gostava, suponho eu, porque sorria sem ficar constrangido ou bravo. E suponho também que seja porque nunca o chamaram de apelido algum. Seu nome era estranho mesmo de se apelidar, tanto que pensei algo completamente diferente, tal da sílaba que nem tinha no nome ou sobrenome dele. Mas era do cara que tinha escrito um poema que ele gostava muito, desses que morreu faz tempo. Dizia que as primeiras estrofes, assim como todo resto, mas as primeiras estrofes o definiam com, hum... hum.. Com as próprias palavras dele, o que ele costumava dizer mesmo...? Hum... Ah! “Plenitude”. As primeiras estrofes o definiam com plenitude. Já esqueci há décadas os tais dos versos, tinha algo a ver com Nada, e querer ser nada, sei lá. Droga, esse capuccino tá sem açúcar. Garçom, açúcar por favor. E ele me pertubava tantas vezes com coisas bobas. Certo que nos sentíamos bem 90% do tempo. Mas tinha dias que ele prefiria debater Nietzsche e Sartre telepaticamente com a barata semi-morta no canto da sala, do que me chamar pra beber alguma coisa. E assim ia. Estávamos sempre conversando coisas simples, pois em tese, em tese, erámos muito diferentes, nos atraíamos por coisas quase que opostas, ou diferentes demais, para debatermos de forma aprofundada sobre o que mais gostávamos. Em tese, digo, porque parece que ambos gostávamos de alguma forma da vida em si. (Que coisa poética, gostar da vida...) E não poucas vezes ficávamos comentando como as pessoas reclamam de política, que os vereadores e derivados são todos uns safados, mas nem param pra refletir e pesquisar sobre o candidato em que votam. E fazem isso quase que aleatoriamente, tacando lá o primeiro que lhes vinha na cabeça, que geralmente era o que fazia mais propaganda, que muito provavelmente era o menos confiável de todos.

*Ela limpa ambas as mãos, sujas pelas torradas.

E ele desengrachava as mãos, e me abraçava quando eu ficava ajeitando a porta de ferro da loja do meu pai. Esses momentos eram de gentileza, que o sorriso dele era compáravel a de um menino de 5 anos. E passou muitas tardes comigo naquela lojinha fria, comendo paçoca e bala juquinha enquanto esperávamos os bêbados pagarem suas contas. Mas isso faz ainda mais tempo. É muito antes do que aconteceu naquele dia. Uns 5 anos antes. Aquele dia... Droga, começou a chover. Ainda bem que o guarda chuva tá aqui enterrado na bolsa. Um cachorro felpudo vivia no quintal dele, e nunca soubemos de onde ele veio. Parecia um puddle misturado com pastor-alemão. Eu sei que aessas raças não cruzam, por conta do tamanho, blá-blá-blá. Ah... Que parecia, parecia. Joguei tantas vezes o soufflé queimado que a irmã mais velha dele fazia. Ele nem se chateava, já que era dele a iniciativa de alimentar o bichinho. De fato, foi bem depois disso que eu comecei a chamá-lo de Al. Foi n’algum dia chuvuso, parecido com esse, aliás. Acho que vou pedir uma sobremesa, faltam 5 minutos pro horário. Ah, o garçom tá vindo pra cá. Oi, poderia me trazer o cadárpio de sobremesas? Obrigada. A aula de Física tinha acabado, e, bem como ultimamente ele vinha fazendo, estava distante de todo e qualquer influente externo, e estava jogado na cadeira, no canto extremo da sala, lendo e rabiscando alguma coisa no caderno. Como era feia a letra dele, deus-do-céu, e eu ria, “hahaha”, claro que baixo, só pra ele ouvir. Brincava se ele ainda fazia curso de aramaico, e ele mostrava a língua como adorava fazer quando cheia de paçoca. Mas tinha algo diferente. Eu me acostumei a presença dele, e ele a minha, desde não lembro quando. O tempo, porém, estava nos afastando, de uma forma que inevitável, intangível, sei lá. Como se a correnteza afastasse dois botes no mar, e um visse que o outro estava furado e afundando, e este que observava estivesse distante demais para fazer alguma coisa. Merda. Isso lembra... Ele sempre sorria de forma encantada com essas minhas comparações idiotas. Deve ser um dos detalhes que fez ele se apaixonar por mim. E porque diabos eu me...?Ah... Obrigada, de novo. Espere, eu vou escolher rápido. Já tenho em mente, um... Um sorvete de morango, mesmo. Isso, taça pequena. Ok. Sim, com cobertura. Ok.

*Seu cotovelo direito começou a arranhar a mesa, em círculos imperfeitos, e seus dedos quicavam na mesma com arritmia.

Vou deixar isso ao deus dará. Fazia anos que eu conseguira enclausurar esses pensamentos na minha memória, trancá-los num bau podre cheio de cupins carcomidos, e engolir a chave. Santa hora que eu vim pra essa cidade maldita, de novo. Santa hora que minha tia-avó resolveu morrer de enfarto, e deixar a herança pra sobrinha-neta-favorita-a-qual-ela-não-dava-a-mínima-há-15 anos. Bem, desse lado não posso reclamar, pois pode ser essa grana que garanta o meu pós-doutorado na França. É uma compensação, ao menos. Ah, chegou. Obrigada, pode trazer a conta também. Hum... Realmente está bom. Essas cafeterias que também vendem sorvete costumam ter uns tão mal preparados... O que eu queria saber é como ele soube disso. Tá certo que ele morava do lado da minha casa, mas será que ele mantinha contato com a minha família, mesmo depois que eu parti? E por que ele não fez uma faculdade, de museologia, sei lá, que fosse, de letras? Ficou enclausurado nesse fim de mundo a vida toda. Ele que, nos bons tempos, era tão inconformado com a vida, com a conformismo das pessoas... São coisas que eu perguntaria se continuasse aqui por mais alguns minutos...Talvez. Mas a chuva tá rareando, e eu... Acho que vou embora. Sem contar que já são 10 minutos da hora marcada. Posso depois explicar que houve um imprevisto... Bem, a conta está vindo, onde está minha carteira? Aqui. Hum, ok. Pensei que ia sair por mais. Aqui está. Obrigada. Obrigada, de novo. Eu vou dar uma volta nesse pracinha daqui de frente. E ficar observando, e ver se ele vem. Pronto, acabei.

*Ela ajeita a bolsa, e penteia o cabelo, mesmo com as mãos. A tarde começou a cair, e a temperatura ia abaixo, concomitante. Pega a bolsa, abre a porta, e dá adeus, a quem, nem ela sabe.

(Continua...)

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Ps: Foto capturada por Daniel Camacho. (Site Olhares.com)