Wednesday, August 20, 2008

com

o tempo todo ela me disse as coisas certas. o tempo todo estávamos certos. pensei que estava errado mas logo o medo se foi. ficou a tragédia. ela me disse que tinha mas é como se não tivesse, então acho que tínhamos coisa nenhuma afinal. acho que devíamos ter começado a procurar. o tempo que tenho é um relógio de pulso no fundo do oceano. e eu mesmo sou uma criatura abissal, sem luz ou fosforescência. o que ouço são minhas memórias, e elas estão começando a falar cada vez mais baixo. ela sabia sempre a hora certa. de parar. de seguir. de ficar. de estar. ela cantava mal. estávamos certos sobre estarmos certos. queria que fôssemos mais otimistas. até que ponto isso seria auto-indulgência e carocha, sei lá. faço uma idéia mínima demais sobre o que estou falando para continuar a fazê-lo. isso é arriscado. pois não quero falar.

Sunday, August 17, 2008

Sundae

acordei de cabeça pra baixo e ainda era de manhã. ela me disse que o sol estava alto, que o gato já havia cagado o quintal todo, que o brazil tinha perdido outro jogo, e que o pão tinha acabado. eu fui atrás de um cadarço para amarrar. chegando na esquina de casa vi 5 mendigos, há uma semana parados no mesmo lugar e na mesma posição. a fila do mercado estava grande, e vi duas crianças de 35 anos chorando por qualquer coisa. a rua estava deserta e ainda assim eu quase fui atropelado. e lembrei que tinha deixado os biscoitos Trakinas no caixa. escolhi voltar atrás. caminhando de volta pra casa passei de novo pelos mendigos, e agora senti um cheiro de comida estragada. mas comida de terreno baldio, e não das que se come em mesa de cozinha ou sala de jantar. bati o portão e passei pelo quintal, e tantas folhas se esfregavam em meus ombros, e tantos percevejos eu decapitava com minhas pegadas, que mais cheiros desagradáveis vinham à tona. a manhã era curta, e eu já não tinha certeza de que em dia estávamos, e uma sensação... bem, eu achei que devia estar trabalhando àquela hora. perguntei para ela se não estávamos atrasados, e ela disse que sim, e eu fui tomar banho. mas enquanto estava no banho, ouvi a televisão da sala ser ligada. saindo de toalha amarrada molhando a casa, a vi deitada dormindo no sofá quase vendo um programa lá, e acho que era programação dominical de tv aberta. então era domingo, afinal. me vesti para o trabalho, atei a gravata, passei meu tônico anti-caspa e sai às pressas. esqueci que ônibus pegar, que esquina virar, e só cheguei suado e fedido numa praia, onde mergulhei com roupa e tudo, e então resolvi voltar. ela já estava acordada e disse que ia fazer miojo porque não havia mais nada nessa casa para se cozinhar. eu disse que sim e que não, e que estávamos definitivamente atrasados, e ela disse "ok". estendi os pés no sofá quando tive uma idéia, peguei uma escada, subi no telhado e fiquei lá tomando sol de canudinho na lage. o almoço estava pronto, eu desci com cuidado, e ela tinha posto meu prato na mesa, e ela não costumava fazer isso e perguntei o que havia de errado. e ela me disse em tom displicente e irônico: ''ainda estamos atrasados, lembra?''. mas começou a rir logo em seguida, e me olhou. e eu a encarei e lhe disse uma frase que eu não dizia há muitos anos. e eu liguei a tv, e deixei bem alto o seu volume, enquanto ia no quintal pegar um tijolo com reboco de um pedaço do canteiro que nunca terminamos de construir, e voltei e joguei ele com força a precisão no meio da tela. a televisão fez um barulho estranho, soltou um cheiro estranho, e nós rimos de maneira estranha disso. e eu disse que estava tudo bem e ela concordou. mas que nada disso alterava o fato de estarmos atrasados. peguei o telefone sem fio, os celulares e o laptop, joguei na privada do banheiro, dei descarga, e a peguei nos braços e fizemos amor. cochilamos e acordamos no final da tarde. eu me vesti, subi no telhado de novo e vi as primeiras estrelas aparecerem no céu da noite. mas moramos no centro de uma cidade grande, e aqui as estrelas são tão minguadas quanto os bonsdias, e o que eu realmente via eram borrões opacos de cor azul pálida que eu devia fazer esforço com a vista para conseguir admirar. me refletia nos olhos as luzes de um grande relógio à distância, daí ouvi um barulho estranho, e ela estava subindo para me fazer companhia no telhado. víamos cachorros suicidas se jogando dos terraços dos vizinhos, ouvíamos adultos de 5 anos de idade querendo não ter que parar de jogar bola na rua (e agora já era madrugada), enquanto nós mesmos refazíamos planos do passado, desenhando mapas e bonecos de palitinho coloridos com giz de cera. mapas que nos levariam para qualquer parte, pra qualquer lugar que quiséssemos ir. Acapulco, Florida. bonequinhos que sorriam e se abraçavam e andavam de mãos dadas na rua, que tinham uma casa cor-de-laranja, onde moravam com seus filhos e seu cachorro Labrador. mas foi então que de repente ela disse que já estávamos atrasados e que agora era tarde demais. e eu concordei. descemos do telhado sem usar escada alguma.