Monday, June 25, 2007

Solilóquio

“Há certas coisas na vida que, se nos dedicarmos demais para que tenham sucesso, terminam em desastre, e nada, nada, e...” Ela olha para ela com sobrancelha arqueada, e a interrompe bruscamente: “Como?”. Ela responde para ela, com leve impaciência. “Isso mesmo. Quando você tentar perseguir demais algo que, racionalmente tenha tudo pra dar certo, você não chega a lugar algum.” Ela aumenta ainda mais a expressão grave de dúvida e insiste para ela: “Porque você está ME dizendo isso?” E ela “Não seja megalomaníaca, e, ou, ou, e egocêntrica. Falo de... Veja, da última vez, aquela... Conte me, como sucedeu.”. Ela...” Ahn?”. Ela... “Como as coisas ‘coisaram’, você chegou junto, ou o contrário, ou vice e versa, o primeiro assunto, o que tinha em comum...” Desanuveando, pouco que seja, o rosto, ela começa: “Ah tá... A verdade é que nada tínhamos em comum. Só aquela ligação estranha, intangível, sei lá. Olhávamos eu, ela, a troca, e percebíamos algum pedaço em comum, em um lugar distante dentro de cada uma, poetizando... “ Tossiu... “... poetizando, havia uma luz de mesma cor, reverberando o mesmo brilho, no farol mais longuinquo de cada uma, na ilha mais escondida por entre as sombras, os oceanos infindos, e etcétera, e foi o que trocamos naquele exato primeiro dia...” Ela... “Quando?” Ela... “Ora quando... Eu estava enxarcada com minha blusa no bebedouro, e ela veio conversando com quem-não-lembro-quem. Tentava e tentava conseguir me livrar daquela armadilha, porque o treco lá era uma armadilha, com tantas pontas de ferro muito mal aparadas, enferrujadas, enfim, eu já estava toda molhada, presa com minha blusa lá, e o bico de metal espirrando e espirrando água... e ela riu horrores, não sei se de mim, ou se da amiga, mas riu bastante. Aquilo me subiu a cabeça, né, você sabe como eu sou assim, intolerante, zero, 0%, ai eu perguntei qual era o problema, e amiga disse que nada, e eu não tinha notado ela. Senão me engano era o seu primeiro dia... Bebi a água, enfim, graças, soltando minha blusa, e me encaminhei pro banheiro pra trocá-la, e vestir o uniforme tradicional. Fui bem rápida.... Saindo, fui para o canto do mural, onde havim um calendário desses de açougue, como ele foi parar na secretaria, só Deus sabe. Quando já tinha visto o que queria ver, me viriei, rapidinho, e esbarrei no ombro dela, ela e amiga ainda estavam lá resolvendo sei lá o quê, e aí que nos olhamos pela primeira vez...” Ela interrompe ela “mas e aí, como foi isso. O primeiro olhar! Diga-me!”. Ela manteve o mesmo tom... “Era o que eu dizia, bem, foi estranho, não sei.. Mas não é a mesma coisa você olhar uma pessoa que depois se revela importante pra sua vida, uma antagonista sua, mesmo, assim, pela primeira vez, e olhar a alguma pessoa que não terá relevância pra porra nenhuma, uma típica figurante mesmo. Nunca é igual, sabe. Tem algo lá, é sempre assim. E bem, eu olhei, e ela olhou, é daqueles momentos quevocê sente que alguém olhou de volta. É empatia, talvez.... Who cares. Então, ai foi assim...” Ela então, com queixo entreaberto, insiste. “Mas continue, responda me o que eu perguntei! Como era os assuntos, e tals?”. Ela... “Ah... é... Não tinha assunto!” Ela ri áspera, tosse leve novamente, e continua... “Não tinha nada, éramos completamente diferentes. Eu pensava coisas distintas. Eu sempre me danei pra essas merdas reliogosas, e ela era cheio de grilos, traumas, neuras, e blablablás do gênero. Lembro que eu puxei assunto da primeira vez, como sempre, sobre literatura, e ela empurrou a conversa pra frente, com a barriguinha com piercing n’umbigo, da mesma forma. Ela não gostava tanto dessas coisas, e eu amava, como até hoje amo, mas foi um ponto. E eu queiria insistir, não sei porque. Tirando isso, sei lá, tudo encaixava, sabe. O olhar, os risos... Arrrg...” Ela vira pro canto, cospe contra o cinzero vazio, enorme, aparentando mais uma bacia, e acrescenta: “E assim foi durante 3 anos, cada vez pior, cada vez mais rareando o sentido, praticamente só nos entendíamos na cama. Discussões, horas vazias, sem bons dias, maus dias, sempre sem reuniões familiares, afinal, a familia dela me odiava, assim como ela propria também, e aos poucos, cada vez mais. Mas é, ai um belo dia eu acabei com tudo. Fim. Satisfeita?”. Ela começa a ensaiar um esboço de sorriso nos lábios, enquanto suas palavras mesmo a atropelam jogando por cima de tudo...”Ah... Entendo. Entendo! Passei por tantas vezes por coisas parecidas... Mas no meu caso foi o inverso, entende?”
Ela faz gestos de quem não quer entender nada, se sentando na beira da cama e puxando o lençol contra o chão. Contudo, vira a cabeça, fita-a, diz uma palavra monossilábica incognicível, e faz sinal com as palpebras pra ela proseguir.

“Então.... foi no meio desses sites de relacionamento. É, isso... Eu vi lá algumas coisas sobre ela, e era tão engraçado, gostávamos mesmo de tudo, tudo igual. E ela era linda demais, não uma modelo perfeita, mas era realmente muito bonita. No ponto. Na medida, sabe? Se fosse perfeita demais me inibiria... E traria mais dores de cabeça. Mas enfim.. Ai tinhamos tudo a ver uma com a outra... Até o tal da porra do saco do gosto literário a gente compartilhava! Kafka, esses escrttores que todo cult diz que lê e entende, ela gostava, e, logo nos primeiros minutos de conversa, demonstrava que entendia mesmo! Sem ser aquelas ostentações retardadas pre-adolescentes! Isso me saciava profundamente. E passávamos horas conversando pela internet mesmo... E o problema foi que as coisas nem demoraram tanto. Ela me empurrou contra a parede. Eu, se hoje sou retraída, ainda que solta com relação a certos assuntos, como intelectualidades banais, eu era retraida sim com meus sentimentos... É...” Pára por uns instantes... depois continua... “Como disse, se sou assim hoje, imagine anos atrás... Aí ela as vezes me jogava indiretas diretas demais, e eu me coçava, me reprimia... pensando ‘caralho, porque fui começar com essa merda...’ Mas você sabe, né... Eram já 5 anos de solidão.Cinema sozinha, E tudo...” Ela interrompe rapidamente: “Mas você sempre foi de ter amigos. Nenhuma anti-social” E ela continua: “...Sim. Mas o SOZINHA que digo, é aquele.. sem uma mão pra segurar, sem um perfume alheio pra sentir mais de perto... Uma cabeça pra aconchegar... Fazia tempo, desde a última vez.” Ela faz um gesto de concordância, já menos contrariada, dando mais um sinal para ela prosseguir. “Então, eu sorri pra mim mesma, respirei fundo, e marquei logo pra nos vermos. E o primeiro dia, admito, me deixou otimista. Ainda que as coisas tenham ido rapido demais para o meu gosto pessoal, o primeiro encontro foi bem bacana... Conversamos horas sobre vanguardas modernistas, sobre cubismo, que ela adorava. E até mesmo sobre trivialidades! Eu e ela também éramos fãs inveteradas de Calvin & Haroldo! Bem, mas eu ainda sentia algo faltando. Ah... mas pensava que era frescura, da minha parte, eu idiota, eu ‘letárgica’, como você diz, e deixava as coisas seguirem em frente.” Ela coça a cabeça, se dirige ao cinzeiro. Depois ela, puxando um masso de cigarros, acendendo-o e puxando logo em seguida um trago, dirige seus olhos de encontro aos dela, fazendo novamente um gesto pra ela prosseguir. E ela o fez: “É... faltava algo. Mas eu enterrei minhas intuições, todas elas, sabe. E insisti. Chance potencial de desencalhar, entende...” E ela ri. “É... foi. Demorou 15 meses pra eu ver que eu estava certa desde o início...” Ela trazendo a tona mais uma vez o olhar de dúvida, interpola “O que Aconteceu?” Ela, agora reticente, e dando ares de arrependimento...”Você sabe... Aquilo. Foi horrível...” O silêncio se torna tão denso, que é possível ouvir, pela janela, cachorros se coçando do outro lado da rua. “Precisamos mesmo citar isso? Nem queria chegar a esse ponto. Era pra eu citar só vagamente. Vagamente...” E ela, compreensível diz: “Entendo... tudo bem. Você que começou... Eu só segui o fluxo...” E ela... “Sim, eu sei... Não é sua culpa... Deixa pra lá”. Ambas se levantam da cama, e vestindo as mesmas roupas, fitando o mesmo céu, nublado, dizem ao mesmo tempo: “O fato é que nada dá certo quando você insiste demais naquilo... Mas quando saber se é certo? Se é perfeito?” Após estabelicido o silêncio, insistente, vestem o casaco negro de couro, depois de já aderidos os outros trajes, atracam-se com os mesmos objetos em pulso, orelhas e pescoço, e suspiram pelo mesmo pulmão, fitando com os mesmos globos oculares – completamente vermelhos – um único rosto no espelho. E finalmente dizem para si mesmas... “Já sei... É simples até... Quando algo tornar o perfeito impossível de se realizar de fato...”

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Fotógrafo: Antônio Lança.
www.olhares.com

Friday, June 15, 2007

Bola no saco.

É assim que funciona:

Se você ouve sons "alternativos", você é Indie, pseudo-intelectual, e tem tendências bi-homossexuais;

Se você ouve heavy metal, bandas "gru-gru", e derivados, você é metaleiro, nerd, burro, viciado em rpg;

Se você ouve pagode, "ligapramimtinhamu" é pagodeiro, também burro, alienado, e... ah é, pobre;

Se você ouve bandas de emo-core, com letras que tratam exclusivamente sobre dor de cotovelo, e derivados, você é EMO (e impreterivelmente dá a bunda também);

Se você ouve coisas dentro do padrão considerado "música-para-pessoas-inteligentes" à la -olá, eu sou inteligente, e escuto isso. se você é inteligente, escute isso também-, você tem neurônios em plena atividade. In other words, você é "cult", e superior à todos os demais seres vivos da face da Terra (incluindo os insetos). Se você gosta de algo fora desse padrão, você é burro, "não sabe nada", e, aliás, também fede e sofre de hanseníase contagiosa.

E se eu prefiro comer tangerina ao invés de laranja, vou morrer aos 20 anos de idade (por falência múltipla de órgãos).

Thursday, June 07, 2007

Soneto Ao Martir Pós-moderno



















Uma nova era de sofreguidões
Braços dados, abertos, ampultados
Os sorrisos estéticos vão dados
À mão, ao amor, à porra dos culhões

Cresci criança, vida que então tive
(Tivera...) deteve-se por si só, declive
Ao cimento seco, dissolve o dia
Céu da boca, a solitude, agonia

"Mãe verberando a caca do filho
Que conspurcou quintal da velha alérgica
Com pedaços: próprio corpo espalhado"

Empalhei me então, e agora eu ilho
Meu crânio seco, a verdade letárgica
Meu peito, a dissecar, só, nunca amado

Saturday, June 02, 2007

Fomes Distintas

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Agachado, topo do cocoruto tocando os braços cruzados, H. contava os segundos, sincronizando-os com sua respiração. Bufante e arquejante, entrefechava a vista de quando em quando, de vez em sempre, e parava por vários instantes observando as nuances da própria vista desfocada, por onde reverberavam alguns raios de luz, que atracavam-se nos sílios e umideciam-se nas remelas. Via o que o rodeava com precisão tão aguçada quanto a de um caleidoscópio. Entretia o tempo contando, com foques e desfoques, o número de formigas, pedregulhos, pombos distantes, como em fotografias dispersas aleatórias.

O prazer. O desejo, era de-de-desejo, H. sabia. O poder da vontade que estalava-lhe por entre os dedos. As palavras tatuadas coloridamente de verde-musgo-catarro e vermelho-sangue na nuca, liberu arbitrium. O ricochoteio do pé contra o cimento –uma, duas, vinte vezes-, lembra-lhe que sabia bem que desejo o apetecia. A unha fincada a carne, -indicador contra polegar-, gadanhando, quase retalhando, o tal do dedo. A cabeça suando e pinicando inquietamente, desde couro cabelo, até dentro da narina suja. A consciêcia que não se apaziguava, nem por um par de segundos, deixando-se aquietar em pleno silêncio, atia-se apenas a ritmia da respiração, porém como se cada insuflação fosse uma explosão em Hiroshima numa manhã de 6 de agosto. Os dentes, já absolutamente rangidos, triturados por si mesmos, por onde passava a língua, mordiscando-se, decepando-lhe tantas coisas sob a imaginação estéril, davam-lhe o gozo da auto-flagelação muda. A tosse tísica corrompendo-lhe os pulmões de segunda mão, e fazendo-lhe sobegar o passo a ponto de tropeçar, e, enfim, abrir a vista, à luz da manhã que tornara-se mais intensa.. O espírito -imaterial, e, contudo, tangível – indiferente ao som dos pássaros piando sem querer, às cadelas transeuntes que fitavam-lhe os olhos, como ninguém mais, ao cocô de pombo que acabara de cair lhe sob os ombros, indiferente à tudo como se o corpo e este espírito não formassem unidade harmoniosa, porém fossem um par de planos, desfocados, separando-se pouco à pouco, conforme as horas clicavam-se dentro dos minutos dentro dos segundos contados.

Mas, assim como passam, as horas param. E elas pararam , postadas à frente de H. às 8 da manhã daquele dia. S. amarrava os cadarços do all-star vermelho, e, feito isso, tornava lentamente ereta a coluna, até esta revelar-lhe seu corpo fino, de discretas curvas e saliências, disfarçado sob a camisa branca e as calças jeans azul-claro. S. era ela, pura e simplesmente, enquanto fitava o céu em ângulo obtuso, com as pálpebras quase fechadas, ajeitando na orelha as mexas de cabelo castanho-médio-liso. Era ela enquanto tossia contra a palma da mão fechada, espigarreava ajeitando a mochila cinza tipo esportivo, e sentava-se caladamente no banco verde escuro, localizado exatamente ao lado oposto, reto, ao canto onde H. se achava jogado e espreitando-a. Era ela enquanto descarrilhava o zíper, abrindo a mochila, e retirava um par de livros, um de capa dura avermelhada com letras gravadas em ouro, e outro cuja capa era de papel menos resistente, com uma gravura de uma família gravada. Era ela enquanto atendia o celular azul, atendia, dizindo “alô”, e seguia conversa entrelaçada a sorrisos e gargalhadas discretas. Era ela quando dizia “até logo, já te vejo”, e jogava tudo na mochila, se levantando bruscamente rumo à leste.

Preparada pra seguir seu caminho, destino, pra encontrar não se sabe quem, não se sabe onde, S. arrastara a sola do pé duas vezes na quina da calçada, e se preparava para seguir em frente. Seja o que fosse acontecer, sua vontade, seu livre arbítrio agora se tornava irrelevante, visto que sua sorte acabara de ser traçada, dois instantes atrás, quando seu semblante passou diante do olhar de H.

As insuflações, as tosses, tendiam a aumentar, a explodir, como na manhã de 6 de agosto de 1946, mas ele manteve o passo, encatarrou dois cuspes verdes contra à calçada, segurou , com a palma da mão fechada, também, em punho, a tosse áspera, escalavrante, e seguiu com calma figurativa. O co-co-coração disparado, furtava-lhe ainda mais às forças, pulsando em socos contra a parede interna do peito. O corpo fazia lhe sentir espantalho recheado que senão de palha, carrapichos e restos de capim.

Carregando peso, óbvio, nas costas, S. tornava-se uma presa fácil de ser perseguida. Mesmo para o então, carcomido, H.

O meio instinto e a meia premeditação, pelos quais dava-se a silenciosa caçada, cheiravam à caçadas selvagens e míticas: a besta macabra perseguindo a gazela indefesa. As confissões que divi-vi-vidia consigo mesmo, eram cada uma de suas tramas, que devoraria-a por inteiro, primeiramente no sentido sexual do termo, e então, literalmente. As histórias que contava a seu eu lírico sobre o caso do dia anterior, detalhes que colaboraram para a sua má campanha e consequente fracasso, estes que se repetiram também das vezes anteriores, meses e anos passados, apontando estratégias para que agora desse certo, e incentivava-se repetindo, palavras assim, como um mantra, que agora daria certo, citando Hannibal e Jack. A boca que subia-lhe, enchia-lhe, escorria-lhe saliva. O globo ocular, conquanto que se considerasse o negro encardido e o branco que já deixara de ser branco pra dar lugar ao amarelo, poderia se dizer que um certo brilho enchera-o de vida.

S. seguia caminhando, murmurando alguma coisa, frases aleatórias, ou versos de canções avulsas, distraída, treijadanto-se indiferentemente ao resto do mundo, como se desde o bom dia que um jornaleiro conhecido lhe gritara, até o cachorro sendo atropelado no meio da rua não passassem de paisagem vazia e inanimada: seu andar era banal, mas as mãos moviam-se como se elas que estivessem ao chão locomovendo o corpo, de tão firmes e vívidas. Estalava os dedos finos e sem anéis ritmicamente, inclusive habilidosa, disfarçando uma batida intermediária entre samba e a bossa nova, as vezes contrapontuando as canções cantadas, outras não, tornando-as duas coisas completamente distintas. Sua cabeça movimentava-se em círculos discretos, e o olhar-castanho-médio prendia-se em algum lugar invisível, além dos edifícios longínquos que bloqueavam o horizonte. As pessoas que cortavam-lhe o caminho mal eram vistas de soslaio. Coçava também a parte de fora do nariz pontiagudo e fino desavergonhadamente, e jogava gotículas de suor para longe da testa, tão naturalmente quanto. E aquele sorriso constante, em forma de um C breve, cavando-lhe uma cova no meio da bochecha-avermelhada esquerda, dava-lhe o ar de deboche para qualquer um que parasse para fitar seu rosto por dois ou mais segundos. Dividia a atenção que dedicava a si mesma apenas com as nuves redondas e branquelas, que especialmente naquela manhã pareciam figurantes de sonhos surrealistas. Enquanto algumas lembravam elefantes, hipopótamos, guaximins, aedis egypt, outras pareciam ter sido desfiguradas por uma mão divina, que as tornara uma única e tênue pastosa massa de algodão branco derretido sobre o céu azul cada vez mais claro.

A consciência de H. ainda entretia-se, espalhada em si mesma, e no que cortava, talhava e admirava. A sua boca abria-se e ao extremo de doer lhe os músculos do rosto e trincava-se a ponto de sentir a pressão da parte superior da sua cabeça interamente sobre o queixo. As mãos, gadanhando-as uma vez mais, agora, mutiliram-se seriamente, ao longo do polegar gotejava o sangue retalhado pelo indicador, e outros três dedos, anelar, médio e mindinho, faziam a tarefa de riscar novas feridas, linhas-concorrentes, a linha da vida e do amor, já curtas, conforme uma cigana espanhola havia dito duas décadas atrás. O liberu arbitrium da nuca era da mesma forma retalhado, do nervosismo que lhe dava comichões por todas as partes do corpo. Os sentidos aguçados, a visão dispensava-se de regalias, e mantia os olhos agora fechados. A locomoção agora se dava guiada pelo olfato e pela intuição, driblando os outros transeuntes conforme sentia suas presenças próximas, fosse um gordo enorme afro-brasileiro cheio de correntes douradas cricantes e barulhentas, fosse um velho raquítico fedendo à alfazema, e cruzando as ruas quando silenciosas em ambos os lados, das mais movimentas, Paulista, Rio Branco, e das curtas, infestadas de botequins e lojas 1,99. A distância à S.- medi-di-dida pela intensidade de seu aroma róseo conforme este evanescia ou tornava-se forte, ardido, quando grandme demais, causava um leve desespero, somado à agitação interior nuclear de H., fazendo-o se mover o quanto rápido possível, à direção da jovem, e ia assim, até emparelhar-se com o rastro correto, ideal, mantendo vigília à espera do momento certo para o primeiro ataque.

S. sentira um chiclete agarrado à sola do seu all-star vermelho. Rindo de si e mesma, encontra um pequeno pedaço de terra onde estava plantada uma mangueira, com a qual sujou a goma, e reiniciou a caminhar, porém ainda mais vagarosamente que antes, arrastando o pé conforme andava no cimento áspero. Puxara do bolso dois fones de ouvido branqueados, e ajeitara-os delicadamente nos ouvidos. Começava a cantar uma canção qualquer no instante que notou que, mesmo querer, devido a sua constante distração, chegara ao seu destino. Era um estabelicimento pequeno, assemelhando-se a um sebo de bairro, com janelas que lembravam arquitetura do século retrasado, mas com porta de aparência mais contemporânea. Vitrines cheias de itens espaçados, S.fitava as sessões lotadas de livros, alguns bem recentes, best-sellers, entrepostos à clássicos de literatura razoalvemente conservados. Escancara o sorriso, dessa vez colorido de satisfação, aprofundando de vez as covas em ambas bochechas rosadas. E partia em direção à entrada.

A hora do abate de S. chega-ga-gara. O carcomido H., observando a lentidão da senhorita, posicionara-se um pouco antes na distância ideal para o ataque, de estrupo e estripação rápidas. A saliva já escorria-lhe queixo abaixo, quando H. enfim tinha ao alcance dos punhos e unhas ensaguentados a cintura de S. As suas encharcadas mãos puxaram-a bestialmente pela bacia, para então arremessá-la à calçada, cuja quina foi exatamente de encontro a sua cabeça, resultando numa batida forte e em um som estalado e alto. A desafortunada S. estava inconsciente. O faminto H. segu-gu-gurava-a com a mesma força que faria se ela estivesse consciente, e apoiava o colo de suas mãos no asfalto, ralando-as e fazendo as sangrar o bastante a ponto de começar a fazer o braço inteiro da moça empalidecer. A bragui-gui-guilha de sua calça estava prestes a ser aberta, e conforme isso acontecia, retalhava-a pelas veias fragéis com a unha afiada de seu indicador, fazendo lhe escorrer também os glóbulos vermelhos, que de um, de outro, começavam a se misturar. A poça escura que se formava sob à cabeça tombada e às costas da jovem desmaiada, aos poucos, então, misturava-se a cor de marfim do piso, ilustrado por flores diversas de espécie fictícia. O vermelho tingido no piso desapareceu por completo.

Boquiaberto ele sai do transe jogando o lençol enrolado pela cintura pro lado e gaguejando o que poderia ser um palavrão em um idioma completamente incognoscível.

Ainda sorridente, ela entra no sebo, ouvindo o toque agudo e suave do sino que jazia na quina superior da porta.