Sunday, May 20, 2007

Al (I)

*Pé dela arrastando alguma coisa na sola, chiclete ou coisa assim, e ela abre a porta da cafeteria, e se senta com as pernas, as tais das pernas, cruzadas, ajeita o casaco e a bolsa. E diz de si para si mesma:


Já faz tempo que recebi a carta, três semanas, acho, e que agora nem sei mais quando, a data borrou, caneta tinteiro, manchou todos os lados da folha. Choveu. Me lembro muito bem o que ele queria. Me encontrar aqui nesse bar, doceria, sei lá... Minha pele tá uma desgraça, descascando, tá parecendo escama de cobra. Nesse mesmo horário, mas há duas semanas atrás. Duvido que ele venha pra cá, desde então, todos os dias na mesma hora. Ele tinha deixado o número de celular, mas só dava fora de área, quanto tentei retornar. Mandei 500 mensagens pra ele vir me encontrar aqui hoje. Se ele recebeu... Pra completar, está bem nublado, deve chover em breve. Ele detestava chuvas. E mesmo que viesse debaixo disso, duvido que me fosse reconhecer, já que não sou mais aquela menininha raquítica por quem ele era apaixonado. Já não sou a garota que ele... naquele dia... Eu só sei que devia ter cortado as unhas, e retocado a droga do esmalte, que tá todo borrado. Merdé. Eu agora sou mulher, tenho um brilho diferente, uma coisa assim, assim, não suspiro à toa mais por ninguém, ninguém, ninguém, não espero a sorte, o amor, ou o sexo bater a porta de casa e dizer "vem". Não mando mais cartas pro papai noel, nem telefono todos os dias pra minha mãe, que meu irmão enfiou no asilo janeiro passado. E essa cabeça que coça, meudeusdocéu, tenho que trocar o shampoo anti-caspa. Visito a velha sempre, ela se tornou caduca, de educação antiga, religiosa, eu preciso... Onde está a droga do garçom? ...Eu preciso visitá-la essa semana ainda. De educação antiga, a família dela sempre achou que lugar de mulher é na cozinha, e essas baboseiras. E pirilim, lá vai ele atender a mesa da moça mais gostosa, safado. E pirilim, nunca passou do ginasial, sei lá o nome, coisa como a nossa quarta série, por aí. E por que raios estou repassando essa pseudo biografia de tudo que venho fazendo? Eu não vou encontrar ele aqui. E eu mesma não sei como ele soube que eu via pra cá por esses dias... De certo se equivocou nas tais das datas. Semana passada ou retrasada era impossível vir. Mas é, o doutorado começou nessas semanas, biologia, animais marinhos. Sempre gostei, e me lembro de quando eu ficava folheando aquelas revistas sobre tartarugas, e ele vinha me cochichar que eu seria veterinária. Meio lesado, hahaha, as vezes ele era tão, tão... Será que ainda tem esses ataques de bobices? Não sei. Mas as vezes ele me torrava a paciência. Ah, enfim vem esse garçom lerdinho.
Ok, eu vou querer um capuccino, e umas torradas amanteigadas. É, só isso. Ok.

A viagem até aqui teve de ser de trem, aqueles novos, que o governo instalou no início do ano. Acho que também choveu no caminho, mas não, não lembro. Posso só ter sonhado... E sai tão exasperada de lá, com medo de perder a estação, que nem reparei se as janelas estava molhadas. E espero só que não demore. Ele me torrava a paciência, com exigências estranhas. Teve da vez que me pediu pra que dissesse o nome da minha estrela favorita, e eu com sombrancelha levantadinha murmurava: “Sol?” E ficava rindo, e me perguntava porque o Sol, e lá ia eu dissertando sobre coisas assim: “Ah, o Sol é mais perto da Terra, logo, é o que eu conheço melhor. Digo todo dia ‘bom dia’, ofereço o chá das cinco... Sem contar que as outras estrelas estão longe demais, e parecem todas iguais. É que nem uma multidão, sabe. Olhando de cima, todas as pessoas são iguais, um, e mais um, e mais um. Se alguém mais quente que algum outro, não dá pra saber, porque nunca estaremos perto o bastante pra ter certeza e sentir o seu calor.” E ele me perguntava, sorrindo, tantas vezes, “Por que você não faz um poema?”, e eu sempre repetia a mesma coisa, que eu não era poetisa, que o que eu gostava era de biologia, de decorar nomes de proteínas, e etc.

*Um pouco de chuva começa a cair, novamente. Mas ela mantém o casaco dobrado sob a bolsa.

O Al... Eu o chamava de Al. Enfim! Enfim as torradas e o capuccino. Obrigada. Essa mesa é suja demais pra mim. Está frio, aqui sempre foi frio assim, mas depois de passar tanto tempo no Rio, a impressão que tenho é que esse lugar se tornou ainda mais frio, como que em contrapartida, dizem, dizem, que o Rio de Janeiro está cada vez mais quente. Deve ser o fim do mundo. E eu o chamava de Al. Al, de au, au, de onomatopéia de latido de cachorro, mesmo. Ele gostava, suponho eu, porque sorria sem ficar constrangido ou bravo. E suponho também que seja porque nunca o chamaram de apelido algum. Seu nome era estranho mesmo de se apelidar, tanto que pensei algo completamente diferente, tal da sílaba que nem tinha no nome ou sobrenome dele. Mas era do cara que tinha escrito um poema que ele gostava muito, desses que morreu faz tempo. Dizia que as primeiras estrofes, assim como todo resto, mas as primeiras estrofes o definiam com, hum... hum.. Com as próprias palavras dele, o que ele costumava dizer mesmo...? Hum... Ah! “Plenitude”. As primeiras estrofes o definiam com plenitude. Já esqueci há décadas os tais dos versos, tinha algo a ver com Nada, e querer ser nada, sei lá. Droga, esse capuccino tá sem açúcar. Garçom, açúcar por favor. E ele me pertubava tantas vezes com coisas bobas. Certo que nos sentíamos bem 90% do tempo. Mas tinha dias que ele prefiria debater Nietzsche e Sartre telepaticamente com a barata semi-morta no canto da sala, do que me chamar pra beber alguma coisa. E assim ia. Estávamos sempre conversando coisas simples, pois em tese, em tese, erámos muito diferentes, nos atraíamos por coisas quase que opostas, ou diferentes demais, para debatermos de forma aprofundada sobre o que mais gostávamos. Em tese, digo, porque parece que ambos gostávamos de alguma forma da vida em si. (Que coisa poética, gostar da vida...) E não poucas vezes ficávamos comentando como as pessoas reclamam de política, que os vereadores e derivados são todos uns safados, mas nem param pra refletir e pesquisar sobre o candidato em que votam. E fazem isso quase que aleatoriamente, tacando lá o primeiro que lhes vinha na cabeça, que geralmente era o que fazia mais propaganda, que muito provavelmente era o menos confiável de todos.

*Ela limpa ambas as mãos, sujas pelas torradas.

E ele desengrachava as mãos, e me abraçava quando eu ficava ajeitando a porta de ferro da loja do meu pai. Esses momentos eram de gentileza, que o sorriso dele era compáravel a de um menino de 5 anos. E passou muitas tardes comigo naquela lojinha fria, comendo paçoca e bala juquinha enquanto esperávamos os bêbados pagarem suas contas. Mas isso faz ainda mais tempo. É muito antes do que aconteceu naquele dia. Uns 5 anos antes. Aquele dia... Droga, começou a chover. Ainda bem que o guarda chuva tá aqui enterrado na bolsa. Um cachorro felpudo vivia no quintal dele, e nunca soubemos de onde ele veio. Parecia um puddle misturado com pastor-alemão. Eu sei que aessas raças não cruzam, por conta do tamanho, blá-blá-blá. Ah... Que parecia, parecia. Joguei tantas vezes o soufflé queimado que a irmã mais velha dele fazia. Ele nem se chateava, já que era dele a iniciativa de alimentar o bichinho. De fato, foi bem depois disso que eu comecei a chamá-lo de Al. Foi n’algum dia chuvuso, parecido com esse, aliás. Acho que vou pedir uma sobremesa, faltam 5 minutos pro horário. Ah, o garçom tá vindo pra cá. Oi, poderia me trazer o cadárpio de sobremesas? Obrigada. A aula de Física tinha acabado, e, bem como ultimamente ele vinha fazendo, estava distante de todo e qualquer influente externo, e estava jogado na cadeira, no canto extremo da sala, lendo e rabiscando alguma coisa no caderno. Como era feia a letra dele, deus-do-céu, e eu ria, “hahaha”, claro que baixo, só pra ele ouvir. Brincava se ele ainda fazia curso de aramaico, e ele mostrava a língua como adorava fazer quando cheia de paçoca. Mas tinha algo diferente. Eu me acostumei a presença dele, e ele a minha, desde não lembro quando. O tempo, porém, estava nos afastando, de uma forma que inevitável, intangível, sei lá. Como se a correnteza afastasse dois botes no mar, e um visse que o outro estava furado e afundando, e este que observava estivesse distante demais para fazer alguma coisa. Merda. Isso lembra... Ele sempre sorria de forma encantada com essas minhas comparações idiotas. Deve ser um dos detalhes que fez ele se apaixonar por mim. E porque diabos eu me...?Ah... Obrigada, de novo. Espere, eu vou escolher rápido. Já tenho em mente, um... Um sorvete de morango, mesmo. Isso, taça pequena. Ok. Sim, com cobertura. Ok.

*Seu cotovelo direito começou a arranhar a mesa, em círculos imperfeitos, e seus dedos quicavam na mesma com arritmia.

Vou deixar isso ao deus dará. Fazia anos que eu conseguira enclausurar esses pensamentos na minha memória, trancá-los num bau podre cheio de cupins carcomidos, e engolir a chave. Santa hora que eu vim pra essa cidade maldita, de novo. Santa hora que minha tia-avó resolveu morrer de enfarto, e deixar a herança pra sobrinha-neta-favorita-a-qual-ela-não-dava-a-mínima-há-15 anos. Bem, desse lado não posso reclamar, pois pode ser essa grana que garanta o meu pós-doutorado na França. É uma compensação, ao menos. Ah, chegou. Obrigada, pode trazer a conta também. Hum... Realmente está bom. Essas cafeterias que também vendem sorvete costumam ter uns tão mal preparados... O que eu queria saber é como ele soube disso. Tá certo que ele morava do lado da minha casa, mas será que ele mantinha contato com a minha família, mesmo depois que eu parti? E por que ele não fez uma faculdade, de museologia, sei lá, que fosse, de letras? Ficou enclausurado nesse fim de mundo a vida toda. Ele que, nos bons tempos, era tão inconformado com a vida, com a conformismo das pessoas... São coisas que eu perguntaria se continuasse aqui por mais alguns minutos...Talvez. Mas a chuva tá rareando, e eu... Acho que vou embora. Sem contar que já são 10 minutos da hora marcada. Posso depois explicar que houve um imprevisto... Bem, a conta está vindo, onde está minha carteira? Aqui. Hum, ok. Pensei que ia sair por mais. Aqui está. Obrigada. Obrigada, de novo. Eu vou dar uma volta nesse pracinha daqui de frente. E ficar observando, e ver se ele vem. Pronto, acabei.

*Ela ajeita a bolsa, e penteia o cabelo, mesmo com as mãos. A tarde começou a cair, e a temperatura ia abaixo, concomitante. Pega a bolsa, abre a porta, e dá adeus, a quem, nem ela sabe.

(Continua...)

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Ps: Foto capturada por Daniel Camacho. (Site Olhares.com)

3 comments:

  1. Anonymous5:33 PM

    Muito bom.

    Engraçado, eu me identifiquei bastante com a sua personagem. Ela pensa da mesma maneira q eu, conversando consigo mesma... Lembranças, pensamentos, sentimentos, tudo misturado...

    E quero ler a continuaçao. Logo.
    xD

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  2. Anonymous7:22 PM

    Muito Bonitinho! E inteligível para a cabeça doente da elis.

    Ú quero maisss!

    *nao leve a mal o bonitinho, é pq é bonitinho mesmo.

    bjins garoto V!

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  3. Anonymous10:45 AM

    Me lembrou um conto de Caio Fernando Abreu: "Fotografia".

    Legal ver você escrever algo, digamos, mais "digerível". Mas não se acostume! rs
    Tô brincando... Escritores têm que ter essa flexibilidade. É uma questão de público, de aceitação, etc. A maioria das pessoas fica meio perdida ao ler coisas mais complexas, elaboradas. Por isso, esse tipo de texto é fundamental pra cativar os leitores.
    Tem que haver um equilíbrio. Um bom senso. E é um alívio ver que você sabe conduzir os dois lados da coisa. Vai ter um público mais amplo e diversificado. ;)

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