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Agachado, topo do cocoruto tocando os braços cruzados, H. contava os segundos, sincronizando-os com sua respiração. Bufante e arquejante, entrefechava a vista de quando em quando, de vez em sempre, e parava por vários instantes observando as nuances da própria vista desfocada, por onde reverberavam alguns raios de luz, que atracavam-se nos sílios e umideciam-se nas remelas. Via o que o rodeava com precisão tão aguçada quanto a de um caleidoscópio. Entretia o tempo contando, com foques e desfoques, o número de formigas, pedregulhos, pombos distantes, como em fotografias dispersas aleatórias.
O prazer. O desejo, era de-de-desejo, H. sabia. O poder da vontade que estalava-lhe por entre os dedos. As palavras tatuadas coloridamente de verde-musgo-catarro e vermelho-sangue na nuca, liberu arbitrium. O ricochoteio do pé contra o cimento –uma, duas, vinte vezes-, lembra-lhe que sabia bem que desejo o apetecia. A unha fincada a carne, -indicador contra polegar-, gadanhando, quase retalhando, o tal do dedo. A cabeça suando e pinicando inquietamente, desde couro cabelo, até dentro da narina suja. A consciêcia que não se apaziguava, nem por um par de segundos, deixando-se aquietar em pleno silêncio, atia-se apenas a ritmia da respiração, porém como se cada insuflação fosse uma explosão em Hiroshima numa manhã de 6 de agosto. Os dentes, já absolutamente rangidos, triturados por si mesmos, por onde passava a língua, mordiscando-se, decepando-lhe tantas coisas sob a imaginação estéril, davam-lhe o gozo da auto-flagelação muda. A tosse tísica corrompendo-lhe os pulmões de segunda mão, e fazendo-lhe sobegar o passo a ponto de tropeçar, e, enfim, abrir a vista, à luz da manhã que tornara-se mais intensa.. O espírito -imaterial, e, contudo, tangível – indiferente ao som dos pássaros piando sem querer, às cadelas transeuntes que fitavam-lhe os olhos, como ninguém mais, ao cocô de pombo que acabara de cair lhe sob os ombros, indiferente à tudo como se o corpo e este espírito não formassem unidade harmoniosa, porém fossem um par de planos, desfocados, separando-se pouco à pouco, conforme as horas clicavam-se dentro dos minutos dentro dos segundos contados.
Mas, assim como passam, as horas param. E elas pararam , postadas à frente de H. às 8 da manhã daquele dia. S. amarrava os cadarços do all-star vermelho, e, feito isso, tornava lentamente ereta a coluna, até esta revelar-lhe seu corpo fino, de discretas curvas e saliências, disfarçado sob a camisa branca e as calças jeans azul-claro. S. era ela, pura e simplesmente, enquanto fitava o céu em ângulo obtuso, com as pálpebras quase fechadas, ajeitando na orelha as mexas de cabelo castanho-médio-liso. Era ela enquanto tossia contra a palma da mão fechada, espigarreava ajeitando a mochila cinza tipo esportivo, e sentava-se caladamente no banco verde escuro, localizado exatamente ao lado oposto, reto, ao canto onde H. se achava jogado e espreitando-a. Era ela enquanto descarrilhava o zíper, abrindo a mochila, e retirava um par de livros, um de capa dura avermelhada com letras gravadas em ouro, e outro cuja capa era de papel menos resistente, com uma gravura de uma família gravada. Era ela enquanto atendia o celular azul, atendia, dizindo “alô”, e seguia conversa entrelaçada a sorrisos e gargalhadas discretas. Era ela quando dizia “até logo, já te vejo”, e jogava tudo na mochila, se levantando bruscamente rumo à leste.
Preparada pra seguir seu caminho, destino, pra encontrar não se sabe quem, não se sabe onde, S. arrastara a sola do pé duas vezes na quina da calçada, e se preparava para seguir em frente. Seja o que fosse acontecer, sua vontade, seu livre arbítrio agora se tornava irrelevante, visto que sua sorte acabara de ser traçada, dois instantes atrás, quando seu semblante passou diante do olhar de H.
As insuflações, as tosses, tendiam a aumentar, a explodir, como na manhã de 6 de agosto de 1946, mas ele manteve o passo, encatarrou dois cuspes verdes contra à calçada, segurou , com a palma da mão fechada, também, em punho, a tosse áspera, escalavrante, e seguiu com calma figurativa. O co-co-coração disparado, furtava-lhe ainda mais às forças, pulsando em socos contra a parede interna do peito. O corpo fazia lhe sentir espantalho recheado que senão de palha, carrapichos e restos de capim.
Carregando peso, óbvio, nas costas, S. tornava-se uma presa fácil de ser perseguida. Mesmo para o então, carcomido, H.
O meio instinto e a meia premeditação, pelos quais dava-se a silenciosa caçada, cheiravam à caçadas selvagens e míticas: a besta macabra perseguindo a gazela indefesa. As confissões que divi-vi-vidia consigo mesmo, eram cada uma de suas tramas, que devoraria-a por inteiro, primeiramente no sentido sexual do termo, e então, literalmente. As histórias que contava a seu eu lírico sobre o caso do dia anterior, detalhes que colaboraram para a sua má campanha e consequente fracasso, estes que se repetiram também das vezes anteriores, meses e anos passados, apontando estratégias para que agora desse certo, e incentivava-se repetindo, palavras assim, como um mantra, que agora daria certo, citando Hannibal e Jack. A boca que subia-lhe, enchia-lhe, escorria-lhe saliva. O globo ocular, conquanto que se considerasse o negro encardido e o branco que já deixara de ser branco pra dar lugar ao amarelo, poderia se dizer que um certo brilho enchera-o de vida.
S. seguia caminhando, murmurando alguma coisa, frases aleatórias, ou versos de canções avulsas, distraída, treijadanto-se indiferentemente ao resto do mundo, como se desde o bom dia que um jornaleiro conhecido lhe gritara, até o cachorro sendo atropelado no meio da rua não passassem de paisagem vazia e inanimada: seu andar era banal, mas as mãos moviam-se como se elas que estivessem ao chão locomovendo o corpo, de tão firmes e vívidas. Estalava os dedos finos e sem anéis ritmicamente, inclusive habilidosa, disfarçando uma batida intermediária entre samba e a bossa nova, as vezes contrapontuando as canções cantadas, outras não, tornando-as duas coisas completamente distintas. Sua cabeça movimentava-se em círculos discretos, e o olhar-castanho-médio prendia-se em algum lugar invisível, além dos edifícios longínquos que bloqueavam o horizonte. As pessoas que cortavam-lhe o caminho mal eram vistas de soslaio. Coçava também a parte de fora do nariz pontiagudo e fino desavergonhadamente, e jogava gotículas de suor para longe da testa, tão naturalmente quanto. E aquele sorriso constante, em forma de um C breve, cavando-lhe uma cova no meio da bochecha-avermelhada esquerda, dava-lhe o ar de deboche para qualquer um que parasse para fitar seu rosto por dois ou mais segundos. Dividia a atenção que dedicava a si mesma apenas com as nuves redondas e branquelas, que especialmente naquela manhã pareciam figurantes de sonhos surrealistas. Enquanto algumas lembravam elefantes, hipopótamos, guaximins, aedis egypt, outras pareciam ter sido desfiguradas por uma mão divina, que as tornara uma única e tênue pastosa massa de algodão branco derretido sobre o céu azul cada vez mais claro.
A consciência de H. ainda entretia-se, espalhada em si mesma, e no que cortava, talhava e admirava. A sua boca abria-se e ao extremo de doer lhe os músculos do rosto e trincava-se a ponto de sentir a pressão da parte superior da sua cabeça interamente sobre o queixo. As mãos, gadanhando-as uma vez mais, agora, mutiliram-se seriamente, ao longo do polegar gotejava o sangue retalhado pelo indicador, e outros três dedos, anelar, médio e mindinho, faziam a tarefa de riscar novas feridas, linhas-concorrentes, a linha da vida e do amor, já curtas, conforme uma cigana espanhola havia dito duas décadas atrás. O liberu arbitrium da nuca era da mesma forma retalhado, do nervosismo que lhe dava comichões por todas as partes do corpo. Os sentidos aguçados, a visão dispensava-se de regalias, e mantia os olhos agora fechados. A locomoção agora se dava guiada pelo olfato e pela intuição, driblando os outros transeuntes conforme sentia suas presenças próximas, fosse um gordo enorme afro-brasileiro cheio de correntes douradas cricantes e barulhentas, fosse um velho raquítico fedendo à alfazema, e cruzando as ruas quando silenciosas em ambos os lados, das mais movimentas, Paulista, Rio Branco, e das curtas, infestadas de botequins e lojas 1,99. A distância à S.- medi-di-dida pela intensidade de seu aroma róseo conforme este evanescia ou tornava-se forte, ardido, quando grandme demais, causava um leve desespero, somado à agitação interior nuclear de H., fazendo-o se mover o quanto rápido possível, à direção da jovem, e ia assim, até emparelhar-se com o rastro correto, ideal, mantendo vigília à espera do momento certo para o primeiro ataque.
S. sentira um chiclete agarrado à sola do seu all-star vermelho. Rindo de si e mesma, encontra um pequeno pedaço de terra onde estava plantada uma mangueira, com a qual sujou a goma, e reiniciou a caminhar, porém ainda mais vagarosamente que antes, arrastando o pé conforme andava no cimento áspero. Puxara do bolso dois fones de ouvido branqueados, e ajeitara-os delicadamente nos ouvidos. Começava a cantar uma canção qualquer no instante que notou que, mesmo querer, devido a sua constante distração, chegara ao seu destino. Era um estabelicimento pequeno, assemelhando-se a um sebo de bairro, com janelas que lembravam arquitetura do século retrasado, mas com porta de aparência mais contemporânea. Vitrines cheias de itens espaçados, S.fitava as sessões lotadas de livros, alguns bem recentes, best-sellers, entrepostos à clássicos de literatura razoalvemente conservados. Escancara o sorriso, dessa vez colorido de satisfação, aprofundando de vez as covas em ambas bochechas rosadas. E partia em direção à entrada.
A hora do abate de S. chega-ga-gara. O carcomido H., observando a lentidão da senhorita, posicionara-se um pouco antes na distância ideal para o ataque, de estrupo e estripação rápidas. A saliva já escorria-lhe queixo abaixo, quando H. enfim tinha ao alcance dos punhos e unhas ensaguentados a cintura de S. As suas encharcadas mãos puxaram-a bestialmente pela bacia, para então arremessá-la à calçada, cuja quina foi exatamente de encontro a sua cabeça, resultando numa batida forte e em um som estalado e alto. A desafortunada S. estava inconsciente. O faminto H. segu-gu-gurava-a com a mesma força que faria se ela estivesse consciente, e apoiava o colo de suas mãos no asfalto, ralando-as e fazendo as sangrar o bastante a ponto de começar a fazer o braço inteiro da moça empalidecer. A bragui-gui-guilha de sua calça estava prestes a ser aberta, e conforme isso acontecia, retalhava-a pelas veias fragéis com a unha afiada de seu indicador, fazendo lhe escorrer também os glóbulos vermelhos, que de um, de outro, começavam a se misturar. A poça escura que se formava sob à cabeça tombada e às costas da jovem desmaiada, aos poucos, então, misturava-se a cor de marfim do piso, ilustrado por flores diversas de espécie fictícia. O vermelho tingido no piso desapareceu por completo.
Boquiaberto ele sai do transe jogando o lençol enrolado pela cintura pro lado e gaguejando o que poderia ser um palavrão em um idioma completamente incognoscível.
Ainda sorridente, ela entra no sebo, ouvindo o toque agudo e suave do sino que jazia na quina superior da porta.
Parece só um pouco. Um pouco que eu desconheço. Ele não sabe falar difícil como você. E nem tem um dicionário.
ReplyDelete*medo*
ReplyDeleteMuito bom =)
Mas veja bem , nosso mestre tem muita classe hem! Por isso é um mestre! O H. o lembra pela fome estranha.
E o garoto V! esta a todo vapor! Muita criatividade pra ti.
Oras, não era pra ser uma ofensa. E se pareceu, peço que me perdoe. Acho lindo o jeito de escrever e pretendo estudar bastante pra eu conseguir entender tudo um dia. E também poder escrever assim! :D
ReplyDeleteAh, então... Pois é.
ReplyDeleteSerá fácil avisá-lo, eu nunca atualizo! ahhaahah²
ReplyDeletebeijos :*
Eu achei q ela fosse morrer.
ReplyDeletexD
Muito bom.
Beijo.
Bem, ao longo da narrativa, me surgiram várias considerações a fazer. rs
ReplyDeleteUma, bem sentimental, foi a vontade de sair de trás de uma árvore qualquer e dizer à senhorita S.: "Pelamordedeus, deixe de ser tão distraída e tome mais cuidado com os estranhos da rua".
Mas, como eu não sou nenhum bom exemplo desse tipo de cuidado, resolvi não me intrometer. =|
Quanto ao perturbado senhor H., posso dizer que fiquei aturdida com a sua habilidade em desvendar a alma de um psicopata, Vinicius. Onde você andou aprendendo essas coisas? rs
Não vou ser eu quem vai revelar aqui os segredos do texto, mas, na minha idéia, o que você quis foi conduzir o leitor a um tremendo mal-entendido. Pelo menos a mim confundiu. Mas ó, foi um alívio... Obrigada. rs
Atordoante, engenhoso, arriscado, melindroso, escrupulosamente detalhista, é mais um texto que prova o seu potencial como escritor-gênio, que desde o começo venho dizendo que você é...
Só acho que você precisa de alguém pra revisar os textos. Têm algumas palavrinhas equivocadas que passam sem perceber.
E uma relida nas regras de crase também vai contribuir pra que o texto fique impecável. ;)
Beijin :*