I
o poeta estava passeando de mão dada com minha solidão
acenava pela janela do ônibus uma semi-conhecida que beijava
o vento, dedicando seu sorriso ao resto de céu azul que esvaziava a minha tarde
outros poetas, mancos e manetas, jamais escreveram um poema
e detestavam ser citados em notas de rodapé, em livros de auto-ajuda
os outros poetas eram como ele, afinal, e dedicavam as sobras do sol ao prazer barato de caminhar sozinho antes das primeiras estrelas dizerem 'oi' (ainda que haja estrelas e estrelas)
II
voltando ao ponto de partida, odiava com um ódio seco como sua tosse tísica ser lembrado por tanto tempo sem ter feito nada que considerasse adjetivo nato de prazer e ria de si e do espelho pendurado no teto do hotel barato onde dorme enfim sentindo-se bem ao ouvir dos quartos ao lado gritos de desespero, choro, gozo, e se lembra da noite passada, dividia no colo quente outra lembrança, que daqui umas horas já também lembraria menos, se rubra, se morena, se indígena, se afro-descendente, se iguais, iguais, iguais
iguais, e abrindo a porta do quarto, e dirigindo-se a rua vazia de lembranças
sentia-se novo, são, salvo, a lata que chutava com força batia forte como devia na parede
voltava com força dobrada reduzida, e passava por esquinas onde já sentara e adormecera em vidas passadas, e a noite pela metade consigo assim desacompanhava tais memórias, por vezes correndo em desespero, para ter certeza de que deixara-as para trás à uma distância segura.
...que fosse escura a avenida prestes a acabar, escura o bastante para ser impossível ler na próxima placa a palavra "Retorno"
III
o tempo passaria em breve, e em breve seria a lua tua, no assento de casa
no choro do próprio cão, do beber da própria água e estancar as próprias manchas de sangue no vestido dela, para ouvir do passado como que agora dizer:
"já esqueci que tinha pressa e esperança de estar aqui"
diz lhe ainda que vida e dor passam, e diz me também, o poeta, que dos rostos que me rodeiam agora nesse metrô tenho receio e dúvida, pois sei que jamais verei uma vez mais nenhum deles e eu rabisco os versos que evitarei de ler da próxima vez, mesmo sabendo que jamais voltarei a tocar estas páginas, e detesto, protesto, infesto minha saliva de pressa e angústia... daí enfio meu sorriso no peito com pressa e escondo, sufoco meu amor até que ele seja um gole só de raiva, jogo o livro já sem capa dentro da mochila, levanto como se tivesse descoberto derepentemente ter esquecido um compromisso inadiável no sentido oposto para o qual eu estava me encaminhando até um minuto atrás.
erro o ônibus, desço a estação errada, me atraso e desencontro de quem...
...
...da viagem que retorno, da saída que se traça pisando quando pisa o lar
digo que tenho certeza apenas da pena que sinto de mim, e me digo, do alto do meu cinismo
que a odeio pela mesma razão estúpida que um mendigo, ao ser cagado por um pombo, tem por este que defeca.
e diria mais se o sono me arremessasse ao despertar ao invés de
IV
passa rápido a jovem que se joga nos braços apaixonados e desconhecidos do amante
e juram jurar as juras mais sinceras que alguém possa proferir por entre as paredes desse cinema nessa sessão deste mesmo horário e dia de agora
disso ele, o poeta, pensa um verso belo, e recita para si, mas acha-o breve e futil, e engole o cuspe dentro do próximo trago de vaidade, mas dita aqui, nestas páginas amassadas, da vista prensada se pressionando a ler o que está faltando, e diz depois que o que há de mais precioso para se guardar da vida é o amor que se viveu, mesmo se este se sepulta há muito mais tempo do que a vida que se segue depois dele, mesmo que a suposta fila referida anteriormente já tenha andado, esvaziado, preenchido-se novamente, e desertificado-se outra vez mais e me ri o desdém que guarda para essas horas, e aponta pra tela do cinema mudo ditando no final da estrofe: "há mais palavras num filme de Chaplin que sentido na vida de 99% das pessoas nessa sala, contando com o projecionista, e, claro, a mim mesmo, aqui, ditando o talvez e o incerto de tantas coisas que faço de conta que vivo. só faça de conta que me lê e fica tudo por isso mesmo."
daí, acho que concordo e viro pro lado, e concorda também o casal que citei, agora prestes a silenciosamente transar de tédio, e a sessão interminável termina e esqueço a razão de tanto desespero até a próxima...
(...)
V
quando sou obrigado a beber a água que cai do teto de casa eu chego a conclusão que estou preso, imóvel e mexo meu corpo com força e o que eu consigo é correr (deixando meu corpo para trás) para os braços de minha mãe, por mais que ela esteja fora de casa, em festas que sempre me convida só para ouvir o som do meu desprezo e
VI
e do susto despertamos, eu e a melancolia de uma civilização inteira
acenava pela tela da televisão a jovem de cabelos cacheados rubros, beijando sem paixão, como quem está a pensar em outra coisa, como quem se despede de um desconhecido, e a madrugada inteira saía caladamente pela porta da frente.
o frio e o vão azul claro que escapam e espreitam pela veneziana esvaziam minha noite passada, pois, às 7 horas, o mundo vai ter de voltar a girar, e encarar de frente a vergonha à luz do dia, íris na íris, e por mais que, infortunamente, tenha que fazê-lo pela raza perspectiva minha, o que nos resta a essa altura é a resignação que cultivam os doentes terminais daquele hospital no meio da Avenida Rio Branco.
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me senti como uma bola de ping pong lendo. agora tô tontinha como se eu realmente a tivesse sido.
ReplyDeleteconcordando com a pessoa daí de cima =P me senti jogada de um lado pr'outro
ReplyDelete=P
"só faça de conta que me lê e fica tudo por isso mesmo"
li tudo u.u
;*