Monday, April 09, 2007

Epitáfio Segundo


Eu te amo. E tá, eu sei, palavras só são palavras, velha frase clichê de traseiro de caminhão. E são ditas no ar que se escafedece-se redundantemente antes que tu termines de respirar entre um tossir, um chupar de catarro e mais outro. E te joga entre os pedacinhos dos mousses de chocolate presos nos dentes que tu não escovaras desde o café com leite de ontem de manhã que tomamos antes de sair pra trabalhar. E as baratas daqui de casa estão perdidas de todo tempo, espreitam-se entre a tampa de chá, coador bege, mexilicam os grãos de açúcar com leite que ninguém varreu, e tú gritas “que merda!”. E está lá trás, vá pegar você a pá pra varrer essa melequêra. Traz a toalha, traz o papel higiênico, traz o documento. E onde eu assino? E coças a mão enquanto escreves. E coças as canelas, enquanto mosquitos te pinicam à’lma (alma fede a queijo mesmo). Nariz meu escorre, e tá, eu já disse isso a tarde toda, mas só queria que tu soubesses que: E ponto. E te embrulha o estômago o meu petit gâteau sem talento ou amor, teus olhos me confessam. E ontem de noite foi terrível, eu sonhava que o fim de mundo era hoje, que cães sarnentos do tamanho de elefantes invadiam a sala de estar que, ao invés de azulejo pele de lagarto, era pavimentada de paralelepípedos cor-de-rosa. E sonhei que a goteira do teto do quarto se mudara para o quarto das crianças e pingava bem em cima da tv 14 polegadas. E vamos jogar paciência, meu amor. Quem vencer mais rápido paga a conta do Habib’s. E tá tarde, porque você ainda não está na cama, caralho? E porra, eu já te disse que não é pra subir na janela desse jeito, já me cansei de te dizer que não é pra você se jogar lá embaixo, sujando o pátio da Dona Rita. E a saudade tava cansada, tirou as meias com chulé, a camisa listrada podre de suor, esticou as perninhas no sofá, lembrou-te da vida que foi sem voltar atrás. E atrás. E atrás. E atrás, você sequer vai voltar atrás. E mesmo seu disser que se eu peco é na vontade de ter um amor de verdade, você já nem lembra do que eu lhe disse. E que as coisas passam, você já sab... (digo) lembra, muito bem.



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Ps:

Foto garimpada do acervo de Geoffroy Demarquet. Vamos, clique aqui para ver seu perfil no site Olhares.com.

2 comments:

  1. Anonymous6:52 AM

    Não pedirei explicações. Juro!

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  2. Anonymous5:44 AM

    Já li esse texto várias vezes - hoje não é a primeira. Mas não consigo dizer qualquer coisa... É um soco no estômago. =|

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