Tuesday, April 03, 2007

Epifania e Eu: I

6 de Janeiro. Eu estava lá sentada no canto da sala, quieta, na minha, não incomodava ninguém. Era ela que vinha dizendo bom dia mumurado, e jogando as roupas pelo tapete de entrada, e esticando as pernas mal depiladas na minha poltrona favorita. Um abuso só. A sala de aula estava com umas cadeiras tortas, cheirava a desdém, e o quadro negro tinha borralhos brancos, gizes usados pra rabiscar rascunhos fedidos, dos desconhecidos vizinhos de classe. Ela chegou simples e pura, nem disse nada, ela costumava, basicamente, se comunicar com olhos e face, dependurou a mochila na cadeira à frente a que ela se sentou, abriu o caderno iniciando as primeiras anotações do dia. Ela sentava na poltrana rosada, e adorava ir até a geladeira pegar suco de cajú e pudim. Comia, babava, lambuzava, sentava e pulava na poltrona, sempre dizendo do dia, uma bosta como todos os outros.

Ela sequer perguntou meu nome, e indagou que horas eram. Ok, respondi de canto de boca, três e cinquenta da tarde eram, e continuei na minha, procurando ânimo para recomeçar a estudar. Ela ensaiou um sorriso, e já meio sem paciência, cuspi a pergunta: qual era a graça? Ela sempre ria das minhas manias estranhas, como não saber como dizer as horas de forma abreviada, como em "15 p'ras 5", ou mesmo, apesar de ser moça, esquecer sempre a tampa da privada aberta. Pediu desculpas, e continuou a fitar o seu caderno, que nem parecia caderno de "menina". Tinha um tigre branco, de olhos violeta, com bigodes tortos, no meiode uma paisagem que nem de longe parecia a África, aquele mesmo fim de mundo.

Perguntei que de turno ela era, por até então não tê-la visto pelos corredores da faculdade. Ela sempre se gabava de ter conseguido passar na prova de transferência para o curso de Engenharia Civil. Mesmo tendo se formado no ensino médio em colégio público paupérrimo morinbundo, ela era uma nerd com “n” maiúsculo. Dedicada, minto, não, obscecada pela carreira e pelo futuro. Suas obsessões e apegações... Ela comentou que tinha acabado, sim, acabado, bem há pouco, de ajeitar a “papelada” para transferência, e que agora, finalmente, poderia se considerar “caloura da universidade X ...”. Estiquei ambas as vistas, e estranhei, parecia auto confiante demais. Nada tinha a ver comigo, afinal. Não, eu prefiria aquelas mais caladas, silenciosas, até autistas. Ou seja, as parecidas comigo, contudo, ainda mais subjetivas e anti-sociais, anti-anti-sociais, anti-qualquer-coisa. Definitivamente não fazia meu tipo. Ela vivia resmugando sobre a minha mania de ser do contra, e brincava, enquanto arriscava umas quase-cócegas, dizendo que eu era a “pseudo-telectualzinha” dela. Virei de lado e a ignorei, fechando a face voltei para mim mesma.

O professor mentecapto-fedido-aidético-tísico de Cálculo chegara mais cedo, para nosso espanto, e começou a apagar o quadro. Pronto, agora que a paz descera ralo a fora. Ainda faltavam dez minutos para qualquer coisa: aula, contato-calor humano. Blá, blá, blá. Inventei de beber água no bebedouro mais longinquo do universo. Ela perguntava, com a falsa curiosidade dos que já sabem o que querem: “Você não tem distúrbio de uretra, nem nada, então, você não sente tanta sede, sente?”

3 comments:

  1. Anonymous8:12 PM

    No próximo capitulo prometo que vou entender melhor. \o/...

    é BOLACHA, repito: BOLACHA!
    =**

    Ps. esse comentário que não agrega valores.

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  2. Anonymous11:30 PM

    esse texto me soou familiar.
    não que eu já o tenha lido em algum lugar hehe mas já vivi algo meio parecido. tirando o final, é claro HAHA aliás, não consegui não rir do distúrbio!

    vai rolar continuação? 0/

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  3. Anonymous7:37 AM

    Nem os anti-sociais-crônicos conseguem fugir de certas proximidades.

    Eu entendi o texto, Vinicius. Bem legal. Me identifiquei bastante com a moça estranha do canto da sala. rs

    Espero que elas continuem sendo boas amigas... ou seja lá o que for essa relação descrita em itálico. rs

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